À conversa com um amigo, ele contava-me que a cunhada, moça inteligente, com doutoramento em Química, que mora sozinha, andava ultimamente metida com a malta das teorias da conspiração (QAnon) nas redes sociais e que só falava disso, e que acreditava naquilo tudo, e que estava muito “estranha”. Dei comigo a pensar nela e noutras pessoas que por esses fóruns espalham mentiras, espalham mensagens de ódio contra certos grupos, muitos claramente furiosos e prontos para violência, muitos apoiantes deste presidente americano, que é uma pessoa sem empatia e um mentiroso patológico. E não conseguia livrar-me desta impressão de que deve haver algo, talvez algo muito básico, que os une, uma condição generalizada que leva a este tipo de comportamento em larga escala.
Muitos se debruçaram sobre a condição humana na literatura e na filosofia. Qual o sentido da vida? Para os budistas, a vida é um ciclo permanente de nascer, sofrer e morrer até obter libertação deste ciclo, para os cristãos a vida é passada em pecado para obter redenção no Céu. Para alguns, a condição humana é estar dependente do nosso cérebro para determinar o que é verdadeiro, e a consequente desorientação e ansiedade de viver num universo que é aparentemente absurdo. Para outros, a condição humana é a luta por satisfazer uma pirâmide de necessidades das mais básicas às mais sofisticadas. Para outros, ainda, é a disputa de valor entre viver uma vida ativa ou contemplativa. Para uns, é a tragédia de os nossos valores morais serem por vezes mais um impedimento, do que uma vantagem, num mundo cheio de maldade e corrupção. Nenhuma destas condições me ajudou verdadeiramente a perceber aquelas demonstrações de ódio e medo. Alguns preocupam-se mais com condições que são circunstanciais como a pobreza ou a ignorância – mas estas não são transversais e também não explicam aqueles comportamentos em pessoas ricas ou educadas.
O poeta mexicano Octavio Paz, contudo, disse – “A solidão é o facto mais profundo da condição humana, o homem é o único ser que sabe que está sozinho, e o único que busca outro. Sua natureza – se essa palavra pode ser usada em referência ao homem, que se “inventou” dizendo “não” à natureza – consiste em seu anseio de se realizar no outro. O ser humano é nostálgico e em busca de comunhão. Portanto, quando ele está ciente de si mesmo, ele está ciente de sua carência do outro, ou seja, da sua solidão.”
E, de repente, este pensamento surgiu-me também como uma epifania – a ideia, de que grande parte da população humana sofre de solidão exacerbada, e que isso explica as demonstrações de raiva e violência (e outros fenómenos como racismo, misoginia, e crentes em teorias da conspiração) que assistimos nos media – e resolvi pesquisar e escrever sobre isso.
Desde o momento em que se corta o cordão umbilical, o ser humano, está sozinho no mundo – sozinho consigo próprio, com os seus pensamentos – e começa a sua busca de momentos de comunhão espiritual com outros para aliviar o peso dessa solidão. Para se distrair dessa condição. Essa necessidade é vital, porque, como espécie, dependemos da cooperação para sobreviver. Por isso é-nos natural procurar sempre companhia.
“Solidão é lava, que cobre tudo” – cantava no seu álbum, a Dança da Solidão, de 1972, o sambista Paulinho da Viola, e acrescentava umas barras mais à frente – “Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou, Maria tentou a morte por causa do seu amor…”
A busca de amor, o cultivar de amizade, a procura de Deus, o querer ter filhos – são todas manifestações desta quixotesca procura do outro na nossa vida.
No velho testamento, Deus estava em harmonia com Abel, o pastor que vivia da natureza, mas Caim, o seu irmão, matou-o; e Deus amaldiçoou-o a uma vida a cavar a terra para obter subsistência. Este episódio tem sido interpretado como uma alegoria sobre os princípios da civilização, e consequentemente o início da tragédia da solidão como fenómeno social – o dia em que os humanos deixaram a vida nómada, em comunhão tribal, no meio da natureza, e a trocaram pela labuta no campo e pela vida (na maioria em pobreza e doença) nas cidades (cheias de iniquidade e corrupção). Mas, mesmo nesta transição, à maioria das pessoas foi possível manter um núcleo de ligações fortes, a família.
A tragédia da solidão virou calamidade nos nossos tempos modernos.
Por um lado, pessoas solitárias tendem a consumir mais; por outro lado, as pessoas que mais consomem dedicam menos tempo às relações. As famílias e as relações duradouras têm vindo a ser sistematicamente desmanteladas, para dar espaço às insatisfações e ansiedades causadas pela solidão, que podem ser temporariamente colmatadas com o sempre maior consumo de bens e entretenimento. Vivemos, sem dúvida, com muito mais conforto e segurança que Abel e os seus, mas o culto do individualismo, o culto do trabalho, o culto do consumo são motores que aceleram a solidão.
Desespero, raiva, depressão, suicídio, violência – que pelo nosso progresso civilizacional desde as cavernas até agora, já poderiam ter sido eliminados (deixando prevalecer uma adoção generalizada dos princípios dos direitos humanos) – são ainda (e por ventura cada vez mais) frequentemente consequências, do fracasso sistemático em estabelecer e manter relações espiritualmente satisfatórias ao longo das nossas vidas – algo que não tem sido possível resolver e aparentemente não terá resolução à vista.
Solidão pode até ser saudável, em pequenas doses, em momentos de introspeção ou meditação – mas é sempre prejudicial no longo prazo: Tom Hanks, em Cast Away, personificou aquele náufrago numa ilha que, à falta de outros, começou a falar com a bola de vólei a quem deu o nome de Wilson; um dos maiores castigos que se pode dar a um prisioneiro é pô-lo na Solitária.
A nossa habilidade de suportar a solidão, ou a nossa resiliência, pode estar associada a dois traços da nossa personalidade que são a extroversão e o neuroticismo. Pessoas introvertidas precisam de solidão para recarregar baterias, porque as relações sociais custam-lhes muita energia. Pessoas extrovertidas são mais adversas à solidão porque carregam-se de energia nas suas relações com os outros. Pessoas neuróticas são vulneráveis ao stress, e estar solitário é uma experiência muito stressante.
A nossa habilidade de criar relações e encontrar momentos de comunhão com outros poderá está ligada a outros dois traços da nossa personalidade que podem estar mais ou menos desenvolvidos em cada um – a abertura e a amabilidade. Pessoas pouco abertas ou pouco amáveis, terão, obviamente, mais dificuldades em criar novas relações, ou aprofundar relações existentes.
O quinto traço (do modelo de personalidade em vigor na ciência), é a conscienciosidade, que permite, a quem seja consciencioso, ter a disciplina de cultivar relações ao longo da vida. Traços de personalidade, tanto quanto percebo, podem ser herança ancestral e podem ser moldados por pressões e cultura.
O facto de organizarmos muitas das nossas atividades em clubes e grupos permite facilitar o encontro de pessoas com interesses comuns e aliviar a solidão: são a encarnação moderna das tribos. Desporto de equipa ou de competição, tocar música, dançar, assistir a espetáculos, congregações religiosas, aulas, viagens em companhia, jogar jogos, estar à conversa, trabalhar em equipa – são todas, com maior ou menor impacto, atividades que permitem partilha de emoções e esforço e resultam em satisfação espiritual e alívio da solidão dentro de uma tribo.
A ideia de que o teletrabalho, por causa da Covid-19, vai passar a ser o novo normal, é exagerada, porque isso seria demasiado solitário para uma grande parte dos trabalhadores – espero sim que seja mais fácil e flexível fazer teletrabalho, em qualquer altura, sem ter que justificar ao patrão – mas os colegas vão continuar a querer ver-se, discutir ideias, trocar impressões, escrever coisas no quadro, partilhar o prazer dos sucessos em equipa, e depois ir almoçar juntos.
Há muitas pessoas, que apesar de acompanhadas, estão solitárias – porque estão rodeadas de relações tóxicas ou de baixa qualidade, mas mesmo estes, por vezes, preferem ficar com parceiros abusadores, do que ficarem solitários. Muitos confundem sexo com amor e não beneficiam da ligação emocional que uma ligação amorosa saudável permite. Muitas pessoas, têm na relação com os filhos pequenos (as crianças sendo naturalmente mais abertas aos pais) as melhores ligações afetuosas – e é por isso que ser pai é maravilhoso, nunca se está sozinho (admito que isto possa ser controverso) – mas arriscam ficar solitárias quando as crianças mais tarde deixam a casa dos pais – solidão na velhice é outro dos dramas modernos – que acontecia menos aos nossos antepassados pré-históricos. A morte de uma pessoa próxima, um rompimento ou divórcio, um filho que deixa a casa, a reforma de uma profissão, deixam sempre grandes vazios de solidão muito difíceis de voltar a encher.
Não é que a solidão seja apenas triste ou deprimente – a solidão determina quanto tempo vives – a solidão mata. Não sou eu que digo é a ciência. E o que a ciência diz é que a qualidade das nossas relações sociais é o melhor previsor de quanto tempo vivemos e da nossa felicidade geral. Estudos científicos mostram, vezes sem conta, que os indivíduos que reportam maior satisfação com a sua vida, que têm melhor saúde, que vivem mais, são aqueles que têm relações afetuosas funcionais e regulares com parceiros, amigos, filhos, parentes e colegas. Não querendo generalizar a partir de um caso particular, não deixa de ser curioso que, de duas amigas minhas, ambas diagnosticadas com o mesmo cancro da mama, aquela com família sobreviveu, e a que vivia sozinha, não.
Isto faz sentido porque os estímulos que os seres humanos obtém através das relações sociais ou o stress que sofrem na solidão, afetam diretamente o balanço hormonal no nosso corpo, que controla todas as nossas funções básicas (metabolismo, sistema imunológico, desejo sexual, fome, etc.) – e isto à vez, não só afeta a nossa propensão para a doença ou o mau temperamento, como também afeta o nosso comportamento em relação aos outros, o que pode exacerbar ainda mais a solidão, num ciclo vicioso, que pode levar à morte.
Quantas das pessoas que conhecemos – aquele tio racista, aquele colega que faz comentários sexistas, aquela cunhada que acredita em teorias da conspiração, o filho do vizinho que se juntou a um gang, ou aqueles contactos que deixam comentários cheios de ódio nas redes sociais – quantos serão, ou têm sido, por ventura, pessoas extremamente solitárias e de pobres relações? Solidão é também uma pandemia e tem consequências graves, e talvez devesse ser tratada como tal.
Não estou à procura de uma desculpa para justificar mau comportamento, o meu ponto é apenas que se houvesse menos solidão, haveria menos problemas no mundo, e que o progresso da humanidade não tem feito muito para melhorar essa condição, antes pelo contrário. E a solução não passa necessariamente por mais tecnologia. Tão pouco se pode forçar com leis as pessoas a serem menos solitárias. A cultura talvez seja a ferramenta mais apropriada, será tempo de cultivarmos uma cultura pós-individualista e neo-tribal.
Paulinho, o sambista da voz serena, terminava a canção dizendo que “Apesar de tudo existe, uma fonte de água pura, quem beber daquela água, não terá mais amargura”. Talvez queria nos dizer que o sentido da vida afinal é não ficar sozinho, é partilhar emoções, é amar e ser amado, é cultivar empatia pelos outros.