Recentemente o Professor António Costa Silva apresentou a sua Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica 2020-2030, onde delineou um conjunto de reflexões que procuram responder à questão do que fazer no day after? After no sentido do impacto da pandemia de Covid-19, entenda-se. Esta visão é lata, como devia de ser, e suficientemente extensa para contemplar um alargado leque de opções, a maioria estratégicas (mas algumas bem específicas), de alcance global e impacto nacional. Tal era, aliás, a intenção deste conjunto de visões estratégicas: apontar caminho indicando um conjunto de faróis de boa luz pintalgados de boas ideias e apontamentos concretos. Mais um para arquivo, dizem uns tantos; a ver se desta é diferente, dizem uns outros. No que me toca, gostei de verificar o conjunto de referências à importância da exploração, implementação e disseminação da tecnologia blockchain, que aliás reforçam o que já tinha sido escrito para o programa eleitoral do PS, e depois transposto para o programa do Governo. Ou seja, é um tema que vai ganhando o seu lugar na praça pública (e política), que vemos ser abordado com mais e mais regularidade, mas talvez ainda não com a regularidade desejada, diria.
No concreto, António Costa Silva identifica que “as novas tecnologias digitais associadas à quarta revolução industrial, como os sistemas de inteligência artificial, a tecnologia 5G, a computação em nuvem e de proximidade, a tecnologia blockchain e a Internet das Coisas, constituem-se, no seu conjunto, como um dos principais alicerces da transformação digital em curso, no sentido de facilitar o cumprimento das metas de longo-prazo de neutralidade carbónica, em linha com as orientações do Pacto Ecológico Europeu e com o desafio estratégico do Governo relacionado com a resposta às alterações climáticas” (pág.38). Ou seja, a blockchain colocada no centro da revolução 4.0, como um dos seus pivots-base e pedra fundacional dos novos sistemas, que devem correr em tal tecnologia a bem da transparência, da imutabilidade da informação e da total rastreabilidade da mesma, e com o Estado a ser um player e stakeholder assumido, acrescentava eu.
Adiante no mesmo texto, a blockchain é novamente identificada, agora em sentido mais prático e demonstrativo das suas aplicabilidades, quando é referido a relação que Portugal deve desenvolver com os seus recursos naturais, nomeadamente os “chamados minerais de alto impacto (aqueles que vão ter uma elevada procura na transição energética), como o Lítio”. Neste ponto são referidas “duas linhas de ação principais: a prospeção para identificação de recursos exploráveis numa abordagem sustentável, e o planeamento da exploração (caso seja tomada a decisão política para avançar), envolvendo todos os stakeholders da cadeia produtiva mineral e garantindo a minimização dos impactes ambientais, pegada de água, redução de consumo de energia e investimento na reciclagem e na economia circular”. Ou seja, total enquadramento nos propósitos do Green New Deal e com os objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, e bem, referindo ainda que “é necessário implementar no terreno o conceito de blockchain” para garantir o “rastreamento da matéria prima desde a origem até ao destino final de forma a garantir a sustentabilidade de todos os processos” (pág. 93). Ou seja, António Costa Silva não somente identifica a generalidade dos usos de blockchain como motor e uma das bases da Revolução 4.0, mas ainda lhe dedica algum tempo a identificar como pode ser utilizada num caso concreto, trazendo transparecia e total rastreabilidade para um setor muitas vezes exposto a essa mesma falta de informação e mecanismos de controlo, bem como fraude e situações menos claras, como o das matérias primas de (muito) alto valor acrescentado.
Em todo o caso, e não obstante estas referências, julgo que António Costa Silva poderia ter ido um pouco mais adiante, e multiplicar não só os exemplos onde a blockchain pode ser aplicada, mas apontar um caminho sobre como lá chegar, i.e., referir o papel que o Estado e as empresas podem, e devem, desempenhar na procura destas soluções. E neste ponto o texto é manifestamente omisso, pois poderia identificar outras áreas – nomeadamente dentro da administração pública – onde poderia o governo apostar em desenvolver MVP’s e outros ambientes de sandbox. Poderia ainda referia a importância de capacitar o tecido económico nacional com as ferramentas especificas que o qualificasse para o trabalho nestas áreas, como um conjunto de apoios fiscais e económicos à formação nestas áreas em específico (do ponto de vista técnico), por um lado, ou com a criação de ambientes de experimentação / sandboxes onde o Estado, e a administração pública e local, fossem parceiros activos na promoção de pilotos que utilizassem a tecnologia blockchain. E dou um par de exemplos.
Na área da contratação pública, tema quente este verão devido aos exemplos de denúncias de má utilização de dinheiros públicos na aquisição de material de proteção, poderia potenciar-se, por exemplo, um par de pilotos em áreas onde se possa prever que não existam grandes conflitos ou complexidades burocrático-legislativas, e técnicas. Testar o conceito de colocar a informação de um conjunto de aquisições de três ou quatro municípios ou agrupamentos municipais que reflitam o país em si (Norte-Centro-Sul-Ilhas) numa blockchain, permitindo assim a imutabilidade da data, o acesso claro e transparente à mesma, a desmaterialização informativa e digitalização processual, procurando desta maneira salvaguardar, de forma publicamente verificável as aquisições que este conjuntos de municípios efetuaria, num determinado setor, e por um determinado tempo. Teria sempre, neste momento, e no meu ponto de vista, de se construir uma solução que não exigisse demasiado do ponto de vista técnico, ou seja, em devida articulação e diálogo com a cultura institucional em causa e que não causasse uma disrupção massiva na forma como estas instituições lidam com estas matérias (por varias razões), da mesma maneira que um projecto desta natureza deveria ser conduzido de forma suplementar aos processos já existentes (e não imediatamente se avançar com a sua substituição).
Um outro exemplo poderia ser o de colocar numa blockchain um conjunto de certificados, como os provenientes das instituições académicas, podendo os mesmos serem facilmente acedidos, legitimados, e utilizados de forma digital, e segura, procurando assim agilizar e simplificar a sua utilização quer para os usuários destes mesmos certificados (muitas vezes perdidos, esquecidos, etc), como as instituições que os produzem, e em última análise o Estado (no caso das suas instituições universitárias). Desta forma, a prova da conclusão de uma licenciatura, mestrado, etc, poderia ser apresentada e verificada imediatamente, não necessitando quem a apresenta de requerer segundas vias, esperar, pagar, etc. E quem quisesse verificar esta informação, saberia que estando ela numa blockchain, a mesma é não corrompível nem alterada, antes pelo contrário: ela é totalmente demonstrável. Um último exemplo, pois poderia deixar-vos mais, poderia ser o de colocar numa blockchain a informação relevante do setor do vinho, desde a vindima (ou até antes, aquando da plantação da vinha) até quando tiramos uma garrafa de uma prateleira. Neste caso, na mesma forma que nos certificados, ou mesmo o exemplo do Lítio apresentado por António Costa Silva, colocar esta informação numa blockchain possibilitaria ao consumidor final saber exatamente, de forma fidedigna, e ao alcance de um click, um conjunto de informações sobre o vinho que estaria a comprar, o caminho que esta mesma garrafa percorreu até lhe chegar às mãos, a sua pegada ecológica, as características do vinho, os seus certificados, prémios, etc. Para produtores, tal informação é importante para valorizarem o seu vinho, combater a falsificação (nomeadamente para mercados estrangeiros, onde estão mais expostos), e terem acesso a um conjunto de analytics, em tempo real. E se adicionarmos smart contracts, podemos ainda optimizar um conjunto de relações comerciais e legais com os seus fornecedores, reguladores e setor Estado, uma vez que a conclusão deste tipo de relações (pagamentos de faturas, impostos, transporte de certificações, etc) ficaria automatizado nestes contratos inteligentes. Como nos exemplos já referidos também este projeto deverá ser o menos intrusivo possível, utilizando tecnologia já existente. Assim, se bem que seria possível desenvolver smart sensors para colocar nas garrafas (que por exemplo sejam capazes de detetar a temperatura ambiente), não nos interessaria nesta fase obrigar os parceiros a tamanho esforço. Ao invés proporíamos sempre um conjunto de soluções que utilizassem as potencialidades dos QR codes e / ou códigos de barras, por exemplo, pois sou apologista de um processo de transformação integrado, i.e., produto de um diálogo prospetivo entre as partes envolventes, respeitando culturas e os tempos da adaptação ao novo, ao potencial processo disruptivo. E naturalmente que quem refere o setor do vinho poderia referia o das bebidas alcoólicas, ou de qualquer produto que beneficiasse destes mecanismos de transparência, de rastreio em tempo real, e de automatização / otimização das relações comerciais entre parceiros, clientes, consumidores e Estado.
Uma última reflexão para apontar para a necessidade, em minha opinião, da tecnologia blockchain sofrer mais atenção e intervenção do Estado e concentrar alguma da sua atenção em Startups / PME’s que trabalham neste ecossistema, pois não o fazer é declarar a vontade de consagrar a dependência tecnológica em relação às grandes multinacionais que ocupam este espaço, cada vez mais com posições dominantes. Não sou dos que entende que devem as áreas ligadas à tecnologia de ponta serem outsourced ao setor privado que governa e gere já grande parte dos nossos sistemas em regime de licensing. Antes pelo contrário, sou dos que defende que para algumas matérias, e para alguns setores, deve o Estado se capacitar para ser um player ativo e um parceiro de pleno direito, pois só assim conseguirá manter algum controlo e independência no que a tecnologia diz respeito, permitindo-lhe em simultâneo ser um dos tais faróis de articulação com o tecido e ecossistema local. E nestes últimos pontos julgo que poderia ter ido a Visão Estratégica do professor António Costa Silva um pouco mais adiante, apesar de reconhecer que blockchain é um tema que se conquista bloco a bloco, passo a passo. Já considero bastante positivo a relevância dada à blockchain, quer em geral como em particular, como considero também bastante positivo a abertura ao contributo público colocadas na página do governo (aqui), e o email dedicado a receber tais ideias (plano.recuperacao@pm.gov.pt). Eu sei que irei enviar para aqui estas que aqui escrevo (e talvez mais umas quantas), e convido-as/os a fazerem o mesmo. Até para ver se desta não deixamos que se arquive mais uma reflexão positiva sobre o nosso País.