Há uma peça de teatro, extraordinária, escrita pela dramaturga Francesa Yasmina Reza, que vai pelo título simples de – Arte. Nesta peça dois amigos brigam, porque um deles pagou uma quantia exorbitante por um quadro de um pintor famoso que é totalmente branco. Vê-se apenas as marcas onde o pincel branco passou pela tela.
A peça é fundamentalmente sobre amizade, mas grande parte da discussão gira em torno do que constitui arte.
É uma tela totalmente pintada de branco uma peça de arte? Ou toda pintada de preto? Ou uma estátua duma vaca colorida? Ou uma esponja pregada na parede?
Esta é talvez uma discussão velha, batida, e uma para a qual eu não tenho nenhuma qualificação especial para expandir. Eu tenho pretensões de ser um pouco artista amador, na medida em que escrevo umas peças de teatro e atuo de vez em quando com o nosso grupo do trabalho, mas admito que isso não me torna nenhum especialista em matéria de arte.
Mas tenho opinião no assunto, e acho que tenho direito a ela, como toda a gente.
Na minha opinião, existem várias coisas que são misturadas. Uma é o ato de criação. A outra é o processo ou método de criação. E a outra, finalmente, é o produto final.
Muitas vezes a discussão gira apenas em torno do produto final e na determinação do seu valor, baseado em considerações estéticas. Agrada ou não agrada? Mostra obra feita por um mestre na técnica? Mostra trabalho e esforço e precisão? Mostra “originalidade”?
Mas o objeto final não é onde reside a arte. É um conjunto de coisas postas juntas que agrada a uns e não a outros. Uma tela com tinta branca vale intrinsecamente tanto quanto uma tela com a Mona Lisa – que é o valor do material que lá está. O valor portanto não vem do produto final. Aliás muito boa gente é capaz de chegar ao pé da Mona Lisa e ficar desapontado – Mas isto é tão pequeno… A tipa nem está a sorrir… porque é que se excitam tanto por causa disto??
Depois, quando a discussão passa além do produto, talvez se preocupe com a destreza e com a perícia do autor. Um autor dotado de um talento especial para manipular o seu material, para transformar, para construir, é naturalmente valorizado – imagine-se um Rodin ou um Rembrandt. Mas esta é a parte em que muitos argumentam, ah mas isso também eu sei fazer, é só dar umas pinceladas assim e assado, até o meu filho fazia isso. Isto aqui foi feito em 5 minutos… Pollock? Isto parece que foi feito por um porco com um pincel amarrado no rabo.
Este aspeto de produção da obra também não é necessariamente onde reside a arte – é onde reside o artesanato. E um bom mestre artesão é algo maravilhoso de admirar. Mas, de facto, é possível a um bom artesão imitar a Mona Lisa tantas vezes quanto queira, mas isso não torna as cópias em novas obras de arte.
Onde ocorre a arte, a meu ver, é essencialmente no processo de criação. A arte não é o objeto, nem o processo, mas um conceito, uma ideia, uma proposta, um pensamento. O resultado pode ser bom ou mau, a execução precisa ou fraca, mas onde reside a arte é no momento (ou momentos) em que o criador se lembrou de algo, ou resolveu exprimir algo que lhe vem de dentro. Arte é (quase) sempre uma manifestação de algo essencialmente humano ou o desejo de desafiar uma audiência a sentir algo, mesmo que seja ultraje, irritação, frustração – todas elas emoções perfeitamente humanas. Eu imagino que quando um artista resolve fazer uma estátua de uma pessoa a defecar a sua intenção não é a de esperar que a audiência a ache esteticamente atraente – é precisamente criar manifestações de repulsa ou constrangimento. O mesmo acontece em literatura, teatro, pintura, e por aí a fora. Tende-se a confundir a qualidade da arte com a qualidade das emoções que ela gere. Se a emoção é positiva – espanto, respeito, admiração – a arte é boa, e vice-versa.
Tudo bem, faça-se isso – cada qual com a sua opinião – mas passa ao lado do papel da arte. A arte tem a ver com o poder de criação ou composição, com a fantasia, com as emoções humanas que resultam na criação e com as emoções que dessa criação resultam em outros. Um bom ator é aquele que cria um personagem – não aquele que imita bem uma certa forma de falar. Um bom cantor é, mais do que ter uma boa voz, aquele que põe as suas emoções na criação de uma interpretação, e nos comove. Uma boa peça de teatro não é aquela com um fantástico diálogo e tópicos importantes (ajuda), mas aquela que nos consegue levar numa viagem emocional dos personagens e nos deixa satisfeitos (ou não).
A arte move-nos – numa qualquer direção – e inspira-nos. E é possível pôr arte em todas as formas de trabalho – não é exclusividade dos artistas profissionais – sempre que se usa criatividade e emoção e se criam soluções elegantes ou estimulantes em qualquer área de atividade humana.
A arte revela humanidade, beleza e amor, sacrifício e talento ou os lados escuros que não gostamos de admitir, ganância, violência ou terror – confronta-nos com nós próprios, descobrindo grandeza ou mesquinhez. Uma sociedade sem arte não sabe auto-criticar-se, nem sabe reconhecer os seus heróis, e, portanto, não evolui. É uma sociedade morta, fantasma.
Todo este lirismo só para dizer que há muitos artistas a passar dificuldades nesta crise da pandemia. Em particular aqueles que dependem de atuações ao vivo – músicos, atores, comediantes e outros que os ajudam a montar espetáculos. E se queremos um futuro como sociedade saudável – temos de os proteger e salvaguardar. Sem olhar ao “valor” das obras de arte, mas ao espírito criador que está por detrás. Uma sociedade que não reconhece, valoriza e protege os seus artistas e pensadores não é uma na qual me apeteça muito viver.