No espaço de uma geração a Europa mudou muito. O programa Erasmus, em todas as suas dimensões (académicas, profissionais, pessoais), tem possibilitado a milhões de cidadãos europeus entenderem o espaço da União como unificado e liberado para uso e usufruto pessoal e profissional. Quer isto dizer que se há 30 anos a capacidade de mobilidade de cada um e uma de nós se condicionava muito a fronteiras nacionais, hoje estas fronteiras encontram-se entre o Cabo da Roca e Varsóvia, ou Atenas, ou Zagreb ou Copenhaga. Neste sentido, se antes a quem fosse de Bragança, Castelo Branco ou Loulé era-lhe apresentado um caminho académico e profissional que o levava a Coimbra, Porto ou Lisboa, hoje a quem venha de qualquer lado esse caminho inclui Barcelona, Lyon ou Budapest, ou Estocolmo ou Amsterdão, com todas as implicações decorrentes nas oportunidades e escolhas de carreira profissional e decisões de índole pessoal. Naturalmente que ajuda a entender toda esta mobilidade a crescente internacionalização da vida académica e profissional, bem como a proliferação de meios de transporte e comunicação baratos (low costs, comboios, chamadas gratuitas na internet, não existência de roaming, etc), sendo mesmo expectável que qualquer jovem europeu passe um momento da sua vida “fora”, capacitando e capitalizando-se. Resta saber se com tantas viagens e oportunidade, quem de casa saí lhe apetece regressar cedo, especialmente quando a noção de distância é hoje tão distinta da que os nossos pais viveram.
E nem vale a pena recuar umas décadas, relembrar da letra dos Xutos & Pontapés as 9 horas de distância de Bragança a Lisboa. Aponto um exemplo actual, de um amigo e parceiro de negócios que recentemente se mudou para a Apúlia, entre o Porto e Viana do Castelo, vindo com alguma frequência a Lisboa. Ora cada viagem dele, ida-e-volta, são mais de 700km. Se em auto estrada, contem com 3 horas e meia, para cada lado. E com cerca de 70 euros para gasolina e portagens. 150 euros ir e voltar. Ora um voo Budapest-Lisboa são as mesmas 3 horas e meia, e, bem comprados, os bilhetes podem custar menos de 150 euros. Ou seja, a utilização do espaço mudou muito, com implicações imediatas: em primeiro lugar assistimos à democratização do espaço internacional, antes exclusivo às elites europeias capazes de suportar este vaivém aéreo. Hoje, viajar no velho continente banalizou-se. Depois, tomando partido da liberdade da circulação de pessoas e capitais, temos assistido ao reposicionamento estratégico de centenas de multinacionais e empresas de todas as dimensões, que a seu belo prazer usam e abusam da sua capacidade de atração de mão-de-obra qualificada (e promessa de carreira “internacional”), e da abertura de mercados, para jogarem com a competitividade fiscal entre Estados e instalarem escritórios, fábricas e serviços nos espaços da União que lhes sejam mais favoráveis, em especial na Europa periférica e semi-periférica. É para estes empregos que muitos e muitas apontam.
Tais circunstâncias levam a que talvez seja hoje mais fácil a um recém-licenciado encontrar o seu primeiro trabalho em Budapest, ou Bratislava, Riga, Praga ou Varsóvia. Todas cidades Capitais, centros de trabalho qualificado para dezenas de multinacionais, com mercado na Europa Ocidental, mas salários da Europa de Leste. É, segundo muitos, uma win-win situation, pois as multinacionais que se deslocalizam para a periferia europeia operam no mercado global, recrutam nesse mesmo mercado global, mas beneficiam de um conjunto de incentivos justificados pela criação de postos de trabalho “qualificados” e da vontade de diversos governos nacionais em atrair estes novos postos de trabalho para os seus países. E referimo-nos, naturalmente, a sucursais, ou shared service centres, pois as sedes destas empresas mantêm-se na outra Europa (ou EUA) ou nos paraísos fiscais da moda. E se a esta realidade juntarmos os programas Erasmus, facilmente entendemos estarem muitos cidadãos europeus deslocados dos seus países / sítios de origem a fazerem-se à vida. E bem. Com tais pressupostos, são hoje muitos milhões a viverem fora dos seus países de origem, a esmagadora maioria em espaços urbanos. Sob estes pressupostos, questiono-me sobre o tipo de envolvimento político e cívico tem estes expats, quer onde agora vivem como de onde vieram, até porque julgo que a maioria deixa de participar em qualquer dos lados.
Neste tópico, recordo-me de uma acção de campanha que organizei há alguns anos, quando liderava em Portugal os PES Activists / Activistas do Partido Socialista Europeu. Na altura convidámos, para as legislativas e autárquicas de 2007, cerca de 15 activistas provenientes de diferentes partidos socialistas europeus, que se associaram às campanhas na área de Lisboa. E se no que respeita a legislativas a iniciativa teve um impacto essencialmente simbólico, ao nível autárquico o resultado de ter diversos intervenientes capacitados politicamente a intervirem com cidadãos e cidadãs europeus, nas suas línguas, e partilhando referências, resultou numa maior mobilização e impacto eleitoral da parte destas comunidades que, formalmente capacitadas para votar, por diversas razões se têm ausentado dos actos eleitorais locais, acabando na altura por se integrarem um pouco mais, cívica e politicamente. Julgo ter sido esta uma acção isolada e sem continuidade, o que é uma pena.
Com uma leitura aparentemente bem atenta a este tópico, está a Câmara Municipal de Budapest, que usufruiu da recente alteração do recenseamento eleitoral autárquico (agora automático) para contar com o voto de milhares de expats nas recentes eleições de Outubro. Com estas novas regras, dezenas de milhar de novos eleitores foram acrescentados aos cadernos, com as expectáveis implicações no resultado eleitoral, em especial nos distritos (freguesias) mais centrais, onde muita da comunidade estrangeira reside. Espera-se agora que a nova administração camarária mantenha activa a ligação com a comunidade expat, uma dinâmica que interessará seguir, até para perceber se novas fórmulas de interacção e integração serão desenvolvidas que proporcionem soluções capazes de responder aos novos desafios da cidadania europeia plena, ou seja, como articular respostas que em simultâneo identifiquem as multi-valências destes espaços urbanos, as suas oportunidades na actual configuração geo-económica europeia e mundial, a exposição ao turismo, ao impacto urbanístico e à gentrificação, e como equilibrar a necessidade de manter a traça identitária local bem viva em articulação com o multiculturalismo energético (e por vezes descaracterizador), ao mesmo tempo assumindo uma posição na linha da frente na defesa de valores liberais de convivência em sociedade. Tudo matérias bem próximas das preocupações de Lisboa, e mesmo do Porto.
Ainda no que respeita à necessidade de leituras integradas do posicionamento das grandes cidades e capitais europeias, a sua relação com diversas instituições – governos nacionais, união europeia – , e o seu contributo para uma reflexão política e societal em torno da importância da manutenção do apoio a espaços liberais de matriz multicultural concentrados em áreas de urbanidade densa, tradição aliás centenária (Budapest, e tantas outras cidades europeias, sempre foram espaços de minorias: uma fatia larga de locais, depois de eslavos, alemães, judeus, latinos, africanos, etc, dependendo da geografia), a Câmara de Budapest patrocinou recentemente um importante encontro entre os presidentes das câmaras municipais das Capitais dos países do Visegrad 4 (V4) – Budapest, Varsóvia, Praga e Bratislava – todas cidades de liderança progressista em países conduzidos ao nível nacional por governos assumidamente populistas e iliberais, etno-nacionalistas com matizes autoritárias e/ou centralizadoras. Este encontro, onde foi assinado um pacto das Cidades Livres, decorreu simbolicamente nas instalações da Central European University, universidade que recentemente foi obrigada pelo governo húngaro a abandonar Budapest e a se re-localizar em Viena. Resta saber se tal iniciativa terá um valor meramente simbólico, ou se uma nova dinâmica pode ser construída na Europa Central à volta das suas capitais, assumindo estas um contraponto com a narrativa nativista de muitos dos seus governos.
Finalmente, importa novamente voltar a referir o interesse de Lisboa seguir estas dinâmicas, pois pode e deve a capital lusa ser parte integrante de qualquer grupo de cidades progressistas e assumidamente livres, até pelo lastro de políticas públicas implementadas nos últimos anos que têm procurado dar respostas a muitas das inquietações que fomos identificando neste artigo, com resultados que a têm colocado no topo das cidades mais atractivas para se viver, visitar e fazer negócios. Isto para não referir que falamos de cidades com dimensão semelhante, e posição semi-periférica no quadro europeu, assumindo-se ainda Lisboa como uma importante porta giratória entre a Europa e os continentes europeu e africano, com ligações seculares à Asia.
Para mais, vejo Lisboa (metropolitana) e Budapest como cidades-irmãs. Ambas bem femininas, com características muito semelhantes, e um conjunto de problemas similares. São ambas cidades altamente expostas internacionalmente e com populações similar (entre 2 e 3 milhões), com um conjunto de serviços e oportunidades semelhantes, forte aposta no turismo e na renovação do tecido urbano, boas universidades, e aposta (recente) nos pilares da nova economia, no caso de Lisboa no ecossistema de Startups (e consequentes inov Labs, co-working spaces, aceleradores empresariais etc), enquanto Budapest se tem concentrado mais em shared service centres associados às multinacionais e em renovar a sua oferta no sector HoReCa. Demonstrador desta proximidade foi o facto de durante a campanha eleitoral terem sido feitas diversas referências ao Orçamento Participativo pelo novo presidente da Câmara de Budapest, Gergely Karacsony, área onde como sabemos, Lisboa tem uma optima experiência acumulada em mais de 10 anos de impacto positivo na vida da cidade. E seria muito interessante ver um projecto desta natureza ser implementado em Budapest, que certamente dele tiraria muito proveito, como de outros que Lisboa tem implementado nos últimos anos, de onde realçaria o Bip-Zip, o ambiente Startups, ou as mais recentes preocupações com o alojamento local e a necessidade de intervenção no parque habitacional para residentes.
Enfim, tudo isto para dizer que se espera que 2020 seja um ano de grande intensidade não só na relação entre Lisboa e Budapest, mas entre Portugal e a Hungria, até porque toda a nação lusitana terá olhos postos na capital magiar este Junho, em virtude de Portugal jogar dois jogos do seu grupo no Euro 2020 no renovado estádio Puskas. E ainda com a possibilidade do primeiro jogo ser contra… a seleção húngara. Interessante será seguir também esta nova dinâmica entre as Capitais e os governos nacionais dos países V4, e o que se espera ser um novo capítulo no conflito latente entre uma leitura liberal e iliberal da nossa contemporaneidade, ou entre uma visão urbana e multicultural e outra neo-ruralista e etno-nacionalista.
Um bom ano de 2020.