Chegou aos 45, o 25 de Abril. Passou uma infância feliz e utópica, com calças à boca-de-sino, adrenalina em alta e comunitarismo sentido, depois adolescência intensa, entrada na Europa, e licenciatura longa numa Universidade Pública ou no mar de privadas disponíveis, entrou no mercado de trabalho. Primeiro como estagiário, depois a prazo. Apaixonou-se, casou-se e pariu. Emancipou-se e comprou casa. Endividou-se e acreditou que teria uma vida melhor que os seus pais. Gastou o que não tinha, fez férias onde não devia, experimentou restaurantes, copos e noite. Achava que lhe bastava estar na Europa para que tudo lhe saísse bem. Mas não, apesar do muito que mudou, muito ficou por mudar. Muitas das elites, alguns comportamentos, organizar decentemente o Estado, e elementos essenciais para a edificação de uma sociedade mais igualitária, respeitada e equilibrada entre quem tem acesso e privilégios, e quem não os tem. Assim, há um par de anos, uns senhores estranhos, com o estranho nome de troika apresentaram com apoio do governo de Portugal uma dieta baseada em receita de precariedade extensa, pílulas de powerpoints, tablets de folhas de Excel, e um entendimento ideologicamente sustentado de que deve ser sempre o povo contribuinte a pagar pelos descontrolos da elite dirigente, financeira, económica e política. Convidou o governo de então o país a emigrar. Assim divorciado dos seus sonhos, com custódia conjunta e dívidas à Segurança Social, mestrado acabado e doutoramento incompleto, muitos saíram do País onde sempre viveram, arriscando fortuna em Luanda, Madrid, Budapest ou Rio de Janeiro.
Enquanto esses senhores da Troika por cá andaram, muitos pensaram e repensaram na vida, agora interrompida, alguns regressaram envergonhados à cama de solteiro em casa dos pais, enquanto preparavam CV, navegavam a net e ajudavam nas tarefas domésticas. Recordavam todas as utopias que ousámos sonhar, juntos, e de como quisemos democratizar, descolonizar e desenvolver uma nação submissa e submersa em 48 longos anos de ditadura estéril e castrante. E de como tudo mudou, para que muito na mesma ficasse. Perderam-se colónias que nunca foram nossas; desenvolveu-se uma percepção de progresso dedicada a manter privilégios da nova – e alguma retornada – oligarquia, edificada entre o PREC e a entrada na Europa; e fundou-se uma democracia de autarcas e federações, aparelhos e jotas – de todas as cores – , padrinhos e afilhados, doutores e engenheiros, replecto de especialistas na prestigiada arte de se saberem (bem) governar, de abusaram do Estado e montarem a sua mama, garantida em avenças sorrateiramente distribuídas, nomeações encaixadas aqui e ali, e posições criada à medida. Quantos Bancos Novos vamos ainda precisar antes de fecharmos a porta na cara a quem de nós abusa, ou quantas mais imparidades da CGD vamos precisar saber para confirmarmos que ainda vivemos num país com diversos níveis de privilégios e privilegiados? Basta aliás seguir o tratamento do senhor Berardo, em tempos figura de proa e mecenas manipulador, e saber que o mesmo tranquilamente deve centenas de milhões, sem colateral que valesse um chavo, enquanto tantas e tantos lutam diariamente para pagar uma renda que sobe vertiginosamente? Como suportamos ainda a repetição desta impunidade não consigo entender.
Bem sei que hoje já não falamos de Troikas, mas sim de Tuk Tuks, de Start Ups e WebSummits. De quão superinse encontra o país, hoje com lugar garantido no pódio de qualquer motor de busca que procure descobrir a última joia urbana por lapidar, onde passar um fim de semana romântico, ir à praia a 20m de uma capital europeia, ver onde mora a Madona, etc. Com tanto hype, não admira que muitos dos que saíram tenham entretanto regressado para participar nesta nova bolha em permanente sopro, nesta fase de expansão turística e de crescimento económico que simultaneamente realça novas oportunidades e acentua as novas fronteiras da desigualdade. Tantos são os novos desafios de Abril.
Dos que veem de fora, muitos trazem novas ideias e experiências do que viveram por aqui e ali, enquanto as nuvens negras da Troika se dissipavam. Abrem agora negócios, empresas, exploram e apresentam novos conceitos de negocio, restauração, hotelaria, serviços. Bem sei também que hoje o país tem na Geringonça um exemplo de progresso e desígnio, de controlo orçamental (quem diria) e de respeito por um conjunto de liberdades individuais hoje sobejamente questionadas neste nosso mundo tão abusado por populismos xenófobos etno-nacionalistas. Vivessem muitos dos que leem este texto por essa Europa e saberiam
Chegados aos 45, tatuados com tantos fados tristes, os pardos quotidianos e melancólicas sinas que partilhamos com quem connosco marcha já nos capacitaram para reconhecermos que uma fertilização insuficientemente feminina tem adiado a conclusão de uma gravidez quatro décadas e meia madura, que fomos defraudados pela excessiva masculinidade da nossa revolução. E, sem procurarmos culpar os nossos pais, é já tempo de nos focarmos nas mães, de retirarmos da heteronormatividade oficializada os ideais de Abril, de abandonarmos os seus símbolos fálicos e excessivos atributos másculos, de nos maturarmos integralmente. E de consagrarmos uma narrativa realmente inclusiva e verdadeiramente emancipadora, que transcenda o binarismo masculino/feminino hegemónico, e nos impeça de continuar a chorar por um País permanentemente incumprido, adiado, abusado. Assim, Abril necessita de um upgrade social e cultural genético, trans, que transporte para o século XXI a plenitude completa e paritária dos ideais sonhados durante a madrugada que todas esperávamos. Pois mesmo que descalços desçamos a cada ano a Avenida, que mudos gritemos contra a precariedade, contra BPN’s ou abusos de poder (em geral), enquanto não apagarmos a excessiva masculinidade de Abril, e a desconstruirmos, iremos apenas continuar a sustentar um sonho de ‘machos’, já para não referir quem já diz Chega, parecendo almejar um regresso a (28 de) Maio. E aos 45 já ninguém atura machos.