As ruas de Budapest tem este ano uma nova imagem. Apesar do Pai Natal ainda ser presença assídua nos mercados da cidade, e das iluminações festivas cobrirem as principais avenidas de Buda, e Peste, e dos shows interactivos entreterem visitantes locais e distantes atónitos com a magia do 3D explanada na Basílica de Santo Estevão, um novo logo tem coberto paredes e esquinas da capital magiar. Diz apenas O1G. E aparece como reacção, orgânica, mas também institucional, às novas aventuras parlamentares do país do senhor Orbán.
Os mais atentos aos assuntos da Europa Central decerto não ficarão surpreendidos com mais uma prova de músculo da parte do governo, que, agarrado à super-maioria parlamentar decorrida dos últimos resultados eleitorais e das características do sistema eleitoral (que permite que com menos de 50% dos votos expressos se obtenham maiorias constitucionais), rotinamente demonstra absoluto desprezo para quaisquer necessidade de debate ou integração de propostas vindas de outras bancadas partidárias (em virtude de se apresentar como o único representante legitimo da vontade do povo húngaro). Ora tal comportamento tem significado que a esmagadora maioria do produção legislativa (e constitucional) que nos últimos 8 anos tem desmontado o estado liberal húngaro tem como base esta visão maioritária e hegemónica, mesmo se ao arrepio das normas estabelecidas (por vezes pelo próprio governo), quando estas não se conformam com a vontade dos deputados do Fidesz. Exemplo desta atitude, absolutamente anti-democrática, de desrespeito pelo Estado de Direito e pelos direitos das minorias (parlamentares) foram os acontecimentos da última semana no plenário do belíssimo parlamento húngaro, aquando da apresentação de dois novos pacotes legislativos com amplas implicações no sistema judicial e no mercado laboral. Em concreto colocava-se a debate uma proposta de criação de um novo sistema judicial de raiz, paralelo aos existentes, com responsabilidades de gerir a máquina administrativa do Estado (e assim os assuntos eleitorais, os temas da corrupção, direito a demonstrações, etc), e um novo pacote de medidas laborais que aumenta de 250 para 400 as horas anuais que os empregadores podem solicitar dos seus empregados (mais de 7 horas por semana), sendo que – pelo bem da competitividade económica – os mesmos empregadores poderão pagar essas mesmas horas extraordinárias em 3 anos… extraordinário, não? Por alguma razão esta proposta foi imediatamente apelidade de «Lei dos escravos», ou em contexto da Europa Central, «dos servos».
Mais extraordinário ainda foi a forma como estes pacotes foram aprovados. Em primeiro lugar não houve qualquer debate parlamentar, pois o Presidente da Assembleia cortou a palavra sistematicamente a qualquer deputado da oposição que pretendesse intervir no plenário, um evento-tributo a qualquer sketch dos Monty Pythons (a seguir aqui). Depois, e em total arrepio dos procedimentos regulamentares, o conjunto de propostas de alteração destes documentos provenientes da oposição, regulamentarmente sempre debatidas e aprovadas caso-a-caso (e foram propostas mais de 2000 alterações, uma estratégia para esticar os trabalhos parlamentares, muito seguida pelo Fidesz quando na oposição) foram empacotadas num único voto, e aviadas em minutos. Finalmente, e como resultado da inquietação geral, toda a oposição se concertou para impedir que a sessão plenária para a aprovação destes pacotes legislativos se realizasse sem que se debatessem devidamente as propostas, e que se seguissem os devidos trâmites processuais, bloqueando fisicamente o acesso do Presidente da Assembleia ao palanque para dar inicio à sessão. Perante esta situação, decidiu o Fidesz dar inicio aos trabalhos, rapidamente aprovando – a sós, e de forma tecnicamente ilegal – o novo pacote legislativo (recordemos que o mesmo Fidesz, na altura da aprovação no Parlamento Europeu do relatório Sargentini se tinha refugiado numa tecnicidade processual para contestar esses resultados, na altura a contagem ou não das abstenções para efeitos de maioria).
Em todo o caso, se o Fidesz contava com a passividade dos deputados da oposição, enganou-se, pois estes – de todos os partidos – juntos com elementos da sociedade civil (e não somente a envolvida com os recentes protestos contra a saída da CEU de Budapeste e com o ataque ao sistema de ensino superior), rapidamente vieram para as ruas protestar, à frente do parlamento, primeiro, depois um pouco por toda a cidade, nevada, com foco especial na sede da televisão pública, que uma vez mais nada reportou acerca destes acontecimentos. Mais um protesto, podem pensar, mas este tem se diferenciado pela forma como tem conseguido unir toda a oposição, juntando – como me referia um amigo – judeus e nazis, gente de esquerdas e liberais, sindicatos, partidos e sociedade civil, jovens e velhos. De tal forma esta coligação orgânica assustou o governo que, sob desculpa de procurar manter a ordem pública, chamou a Budapest practicamente todo o corpo policial do país. É neste contexto que é criado o slogan O1G, e sucedâneos visuais visíveis em tags, escritos urbanos, memes, autocolantes, etc. Por razões de decoro, não irei traduzir totalmente o seu significado para português, apenas apresentar a sua versão magiar, contando com o facto de muitos dos leitores não dominaram a língua: Orbán Egy Geci, ou seja Orbán é um…. (deixo o resto à vossa imaginação).
Incorro nestas deambulações linguísticas para vos deixar um último exemplo da actuação governamental, e do alcance da mesma, pois no pouco tempo de antena dedicado a este tema (mesmo quando a sede da MTV, a RTP local, se encontrava cercada por milhares de demonstrantes a mesma seguia a sua programação oficial), o acrónimo O1G é apresentado como estando relacionado com um grupo cristão (creio que do Reino Unido), significando «Only one God». Ou seja, aparte dos créditos criativos que são devidos, seria como se o canal do Futebol Clube do Porto apresentasse uma celebração no Marquês como sendo a comemoração de um qualquer troféu… do Manchester United, e ainda ligasse a mesma ao facto de Lisboa estar invadida de turistas…
Admito que ainda cheguei a pensar que o governo húngaro recuasse nos pretéritos de lavar adiante a «Lei dos escravos». Isto por duas razões: uma porque no passado já o tinha feito, aquando da proposta de taxar o uso da internet, quando entendeu que centenas de milhar de húngaros de todas as proveniências ideológicas, sociais e geracionais se manifestaram ruidosamente nas ruas de Budapeste e, temendo alienar esta base social de apoio – também sua – retirou a proposta. A outra razão prende-se com uma análise cínica do uso da política, pois podia bem o Fidesz, com duas propostas altamente criticáveis, deixar cair a de maior impacto social, passando por entre as pingas da chuva a que lhe garanta mais poder de controlo do aparelho do Estado, ou seja, a que pretende construir um novo sistema judicial administrativo, de inevitável controlo, absoluto, de gente ligada ao governo. Mas admito que me enganei, pois ambas as pospostas legislativas acabaram de receber a assinatura de János Áder, o Presidente Húngaro, sem critica, opinião ou parecer. Bem sei que nem todos os mais altos cargos institucionais podem ser preenchidos por professores catedráticos de direito constitucional, mas para o bom funcionamento das instituições democráticas, como as conhecemos, é imperativo que existam não só sistemas de checks and balances (pesos e contramedidas), como quem do ponto de vista formal consiga providenciar uma visão crítica, construtiva, sobre o regular funcionamento das instituições. Assim, as novas leis vão entrar em vigor no dia 1 de janeiro. Ambas com um gigantesco impacto na vida laboral e judicial do país. Isto cerca de 15 dias depois de terem sido apresentadas, sem debate político ou público, e ao arrepio de todos os trâmites formais. Por estas e por outras canta-se em Budapeste estes dias «all we want for X-mas is (some) Democracy».