Decidi abrir este espaço a artistas convidadas, gente com quem tenho dividido a minha vida em Budapeste e reflectindo sobre as ligações entre Portugal e a Hungria. Serve ainda esta decisão para deixar gravada, para memória futura, um conjunto de experiências e vivências de quem, num determinado momento, decidiu colocar os dois países, e suas capitais, como peças centrais das suas vidas.
Hoje convido a Helena Lopes Braga, PhD researcher na Central European University que, apesar de dezenas de amigos em comum em Lisboa, a conheci quando aterrou em Budapest para começar o seu doutoramento. Claro está que ficámos amigos. Deixo-vos a Lena.
Uma portuguesa em Budapeste
É sábado, início da tarde. Saio de casa em direcção ao District V, onde fica a minha segunda casa – ou primeira, tendo em conta o número de horas que lá passo – a Central European University (CEU). Pelo caminho vejo inúmeros reclames com mulheres altas, magras, loiras (ou um bocado menos loiras), com pouca roupa e em poses artificiais. Todas as ourivesarias usam mulheres iguais para exibir os seus produtos. Lojas de roupa de cerimónia a mesma coisa. Por toda a cidade cruzamo-nos com umas scooters azuis duma empresa com a palavra pizza no nome, com uma caixa de transporte de comida com uma fotografia de uma modelo loira e magra a comer uma salada fitando a câmara provocadoramente. Cruzo-me com propaganda do governo. Há grupos de homens por todo o lado. Na zona onde vivo, são essencialmente homens mais velhos (d)e grupos sociais mais pobres. Habitualmente não me chateiam, olham apenas. Chego ao (József) körút, uma das avenidas que traça uma circular à volta do centro de Budapeste, e já há estrangeiros a beber enquanto comem hamburguers de quilo como brunch – é um três em um: cura a ressaca, serve de pequeno-almoço e de almoço.
É quinta-feira, são oito da noite e estou a regressar a casa da universidade. “Foda-se. Esqueci-me que era quinta-feira de novo”, digo-me. Há dias, entre a segunda e a quarta-feira, em que é mais tranquilo percorrer os três quilómetros a pé até casa. Há outros em que aprendi que devo ir mais cedo se quero alguma tranquilidade. É que, a partir das seis/sete da tarde, as ruas no centro estão cheias de grupos barulhentos e espaçosos de homens do Reino Unido, Irlanda, e outros países do norte-europeu – mas estes são os que vejo mais – bêbedos. Uma espécie de Albufeira, mas com frio (ou sem o mesmo calor) e sem praia. Vêm porque lhes é barato, porque ouvem contar histórias das gajas que se comem e das bebedeiras que apanham e das limousines que alugam. Não querem saber da cidade, do país, das pessoas, da vida. Da pobreza, da violência, da xenofobia, do racismo. Do alcoolismo. São praticamente todos heterossexuais, claro –a vida LGBTI+ em Budapeste é muito limitada e escondida.[1] Vão para os mesmos bares e restaurantes que há noutros países, e visitam um ou dois locais que surgem em todos os guias turísticos. Passam nos túneis de acesso ao metropolitano onde dormem centenas de sem-abrigo da mesma forma que passam pelo Jewish Quarter, e por este com o mesmo à-vontade com que passam pela Király utca ou pelo körút. Tudo é passagem, indistinta, para os restaurantes, bares e clubes noturnos.
Com os estrangeiros é como se fosse menos grave. Incomodam, claro, sempre. Reiteram o meu lugar de subalternidade de mulher, sujeita às suas exibições primitivas, em manada, de masculinidade tóxica. Mas sei que consigo ir avaliando o perigo, que qualquer coisa posso confrontá-los e dizer algo, que posso gritar-lhes “fuck you”. Com húngaros não. Não reconhecer a boca, o piropo ou o insulto que se ouve é aterrador – e é-o, sobretudo, não se distinguir qual deles se está a ouvir. Quando não se conhece a língua do país onde se vive, qualquer interacção tem um custo emocional. Algumas pessoas lidam com isto de forma mais tranquila, a outras pesa mais. Custa mais quando és uma mulher (pese embora o meu privilégio cis e branco)[2] num país como a Hungria, onde pouca gente em sítios-chave fala inglês. Onde a misoginia (bem como a homofobia e o racismo) está tão entranhada que a sentes logo no caminho que te leva do aeroporto para Budapeste – não só nos reclames da berma da estrada, mas com um bocado de azar calha-te um taxista (ou condutor de shuttle) abertamente sexista, como é frequente acontecer, que te trata como uma ignorante e/ou vai o caminho todo a olhar para as tuas pernas e a tentar manter contacto visual e meter conversa à força. Em Budapeste, só no inverno visto as roupas que quero e gosto, porque na rua ando tapada com casacos. O resto do ano ando de calças de ganga e t-shirt pois não me sinto à vontade para usar vestidos ou roupa mais decotada, o que ainda consigo fazer mais ou menos tranquilamente em Portugal – depende dos sítios, dos locais, das horas, mas consigo ir fazendo essa gestão se souber como vai ser o meu dia. [E não, não devia ser preciso fazer essa gestão.]
São cinco da tarde. Vou de mão dada na rua com a minha namorada. Paramos num semáforo para atravessar. Do outro lado, também à espera do verde para atravessar no sentido contrário, um homem sensivelmente da minha idade, com quem presumo ser a sua mulher e filha, olha-nos fixamente. Percebo que ele tem um olhar raivoso e faço o que primeiro costumo fazer nestas situações para evitar o confronto: ignorar, desviar o olhar. A minha namorada não repara e beija-me a bochecha do lado dela. O semáforo fica verde. Continuo a ignorar o homem, torcendo para que não aconteça nada. Mas chega aquele segundo inevitável em que nos cruzamos, ele passa e berra-nos algo em húngaro mesmo em cima da nossa cara. Não faço ideia do que terá dito. Foi agressivo. Provavelmente algo mais do que: “fufas de merda”, ou “que vergonha, há crianças aqui”, como já ouvi em Portugal.
Em encontros com homens húngaros, encontrei comportamentos algo semelhantes: cavalheirismo de pendor sexista, que se desfazia quando percebiam que eu não estava fascinada com eles. Um era sociólogo, estava com um projecto na academia das ciências húngara e esteve a explicar-me como os estudos de género e o pós-colonismo não fazem sentido e são um desperdício de dinheiro que devia ser usado em “ciência real”. Só me deu oportunidade de dizer algo mais do que duas ou três palavras de vez em quando (eram breves “não concordo”, “acho que estás errado”, “vários dos teus heróis discordariam de ti” que eram imediatamente interrompidos) quando comentou: “se calhar vais dizer que eu sou sexista”. Eu disse e ele ficou muito perdido porque tinha sido um cavalheiro a noite toda – não foi assim tão longa –, pagando-me coisas e levando-me a ver sítios – pagou-me uma bebida e demos uma volta a pé – e agora acusava-o de ser sexista. Cansei-me de argumentar com uma porta e disse que ia embora, e eis que ele me pergunta se eu quereria sair com ele novamente.
Outro pagou-me um pequeno-almoço para estar uma hora a ouvir falar dele e dos seus feitos profissionais e financeiros, e de se gabar de ser amigo pessoal do Professor Alexandre Quintanilha, o único português que ele conhecia. Não me perguntou nada sobre mim, nem tão pouco deu espaço para que eu falasse ou participasse de alguma forma no seu monólogo. Ao fim de quarenta e cinco minutos disse-lhe que estava atrasada para uma coisa, levantei-me e fui embora.
Com outro, que se identificava como feminista, tive uma relação de curta duração que terminou porque ele achava que sabia melhor do que eu e que decidia por mim o que é que era considerado subjugação feminina, e porque é que toda a pornografia e todo o trabalho sexual eram prejudiciais ao mundo. Então eu decidi o que fazer.
Na rua vejo com muita frequência casais jovens, muito jovens, com um, dois, três filhos. O que poderia ser lido como sinal de prosperidade, não o é, mas revela de novo quão arreigados estão os ditos valores católicos tradicionais húngaros apregoados pelo Primeiro Ministro. Não são, na sua maioria, casais felizes, mas pessoas que cumprem uma norma que lhes é imposta e que querem mais ou menos cumprir. [Serão assim tão diferentes de outros tantos que conhecemos? Não sei.]
Construí uma grande amizade com uma Húngara. (E dizer que em quatro anos construí uma amizade com apenas uma Húngara é já dizer muito da minha experiência no país) Partilhámos problemas de homens e mulheres – e vida, muita vida. Do seu (que veio a tornar-se ex-) marido, dos filhos. Contou-me histórias de amigas suas. De mulheres, de filhos, de pessoas. Sim, algumas daquelas histórias tocam-se muito com histórias de amigas minhas em Portugal. Mas há, apesar de tudo, uma distância que eu sinto delas, deles, destas histórias. Será esta distância fictícia? Será a sociedade húngara mais sexista do que a Portuguesa? Sentir-se-á mais o sexismo nas ruas de Budapeste do que nas ruas de Lisboa?
Parece-me que sim.
Não quero caracterizar a Hungria ou muito menos “esses” países europeus – que nos são distantes geografica e culturalmente – como menos civilizados do que “A Europa Ocidental”. E qual Europa Ocidental? Nós só somos da Europa Ocidental para quem não faz parte da Europa do norte e dentro das nossas pequenas cabeças. Para os outros países, os da Europa dita civilizada, os povos do sul são os selvagens, os porcos, os preguiçosos, os pobres, os atrasados, académica e civilizacionalmente. Quantas vezes me perguntaram pelo meu país, a Espanha? Quantas vezes me apresentaram pessoas de Espanha e Itália como se fossem minhas compatriotas? Académicas da Alemanha, Áustria, Países Baixos e Estados Unidos falaram-me de forma condescendente por eu vir dos confins da Europa. Sei o que é, porque aqui aprendi, não conhecerem a minha história (ou língua) e enfiarem-me num saco generalista junto de outros países, aos olhos de alguma Europa, semelhantes. Deixei de fazer o mesmo com esta outra Europa que vim a conhecer. Aprendi a falar apenas na Hungria, e de forma bastante limitada à minha vivência pessoal de Budapeste.
A alteridade que eu vivo em Budapeste, e na Hungria, está absolutamente condicionada à minha condição de Portuguesa, branca, sem nenhum problema de saúde visível, com uma educação formal e que busca ao mesmo tempo descontruir os seus próprios preconceitos em relação a esta Europa que lhe dizem ser distante. Em véspera do quarto aniversário da minha ida para Budapeste, não me restam dúvidas de que os condicionalismos histórico-políticos deste país lhe conferem particularidades em relação aos seus vizinhos e em relação ao nosso, Portugal. É óbvio que Portugal também é misógino. Não deixou de ser porque temos menos reclames de detergentes com mulheres, por termos menos mulheres altamente sexualizadas a vender tudo e mais alguma coisa ou sequer por termos dois reclames (Dois!!! E toda a gente sabe quais são, da margarina e do detergente de roupa) em que são homens a ser objectificados. Em Portugal, só este ano e até esta semana, dezassete homens assassinaram as suas companheiras, namoradas, esposas, exs, mães – o último feminicídio ocorreu na Figueira da Foz no passado dia vinte e oito de Agosto, pelo marido da vítima. É um número assustador. Gritamos #nemumamais e tomamos as ruas, e fazemos campanhas, e queremos proteger as nossas amigas, vizinhas, colegas, mas sabemos que elas não estão a salvo e muitas vezes pelas mais variadas razões não podemos mais fazer mais do que o pouco que conseguimos fazer.
Em Budapeste, eu vivo numa bolha. As minhas interações fora dessa bolha são limitadas e mediadas por ela. Sendo a minha bolha, a CEU e a sua comunidade, constituída por um corpo docente e discente internacional, tendo como língua oficial o inglês, e sendo uma das melhores universidades de ciências sociais do mundo, não é de estranhar que o governo xenófobo, sexista e profundamente anti-democrático como este que é o terceiro consecutivo (e quarto no total) de Viktor Orbán faça dela um alvo. Não se omita que a CEU foi fundada pelo filantropo judeu hungaro-americano George Soros, que Orbán tem feito seu inimigo público e causador de todos os males que assolam a Hugria e a União Europeia. Também com o apoio da Open Society Foundation de George Soros resiste ainda a Nane, a única associação de defesa dos direitos das mulheres que ainda sobrevive, apesar das várias ameaças de encerramento, das buscas e apreensões feitas nas suas instalações e em casa de algumas das suas voluntárias. Com a nova lei das ONGs, que tem como alvo a Nane, entre outras ONGs consideradas uma ameaça à “nação”, também esta será forçada ao encerramento. [A propaganda eleitoral atingiu níveis Orwelianos ao ponto de a palavra mais repetida ser “Soros” – desde os cartazes que incluíam a sua cara identificando o inimigo, aos “noticiários” da rádio que eram peças propagandísticas anti-Soros, aos comunicados oficiais denunciando os ataques de Soros à nação Húngara.] Este governo consegue existir no limiar do que é considerado democrático, e constantemente pressiona as regulamentações da União Europeia da qual faz parte, no sentido de fazer impôr a sua vontade, a de Orban-Todo-Poderoso. [Veja-se a propósito apenas um exemplo de sexismo e islamofobia da campanha eleitoral para as eleições de Abril de 2018] Um destes últimos ataques, que não é, de todo, o mais grave, é a declaração feita na segunda semana de Agosto que anunciou o fim dos estudos de género na Hungria. Até 2018, apenas duas instituições investiam nesta área do conhecimento científico, a CEU, com o programa mais antigo, desde 2008, e a ELTE (Eötvös Loránd University). Com este ataque à liberdade académica, a Hungria dará um passo mais em direção à crise democrática que enfrentamos, Europa e mundo fora. A justificação oficial – o investimento a fundo perdido dado o reduzido número de discentes – não convence as universidades nem parte da sociedade civil, que identifica a decisão como mais um acto de propaganda duma batalha ideológica convervadora dum governo que várias vezes se manifestou publicamente contra os estudos de género.[3]
Até agora, o governo não consultou as autoridades responsáveis pela educação superior e sua acreditação, muito menos consultou as universidades em causa. Setembro aqui está e, apesar da luta continuar (assinem as petições que vos chegarem, não é muito, mas é o que há), o governo manifestar-se-á novamente em breve. Seguindo para parlamento, como se espera, a proposta será aprovada pela maioria absoluta do partido de Orbán. E a Hungria torna-se cada vez mais uma Hungria. Orgulhosamente sós, soa familiar? Pautada pela diferença. Por uma diferença má, para mim, para nós, para mulheres, para pessoas não brancas, para pessoas refugiadas, para pessoas não heterossexuais. Pela diferença que o populista Orbán deseja.
No passado dia vinte e oito de Agosto a CEU anunciou que se vê forçada a suspender os seus programas educativos da OLIve (Open Learning Iniciative), destinados a refugiadas e requerentes de asilo. Mais uma manifestação duma nova Hungria que se constitui, com ou sem União Europeia – para já, com o aval, em forma dum silêncio ensurdecedor.
Helena Lopes Braga[4]
Musicóloga, doutoranda em Estudos de Género na CEU, Budapeste.
[1] LGBTI+= Lésbica, Gay, Bissexual, Trans, Intersexo e outras identidades e práticas não-normativas.
[2] Cis= abreviatura de cisgénero, caracterização de uma pessoa que se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença.
[3] Lembro a este respeito o cancelamento de 15 das datas originalmente previstas para o Teatro de Ópera Erkel do musical inglês Billy Elliot em Junho passado, acusado de promover a homossexualidade, “numa situação em que a população já se encontra envelhecida e se tem reduzido e a nossa nação é ameaçada por invasão estrangeira” – palavras de Zsofia Horvath no jornal pró-governo Magyar Idok, posteriormente apoiadas por mais comentadoras e media conservadores.
[4] A autora escreve segundo o acordo queerográfico, tendo optado por generalizar o uso do feminino plural.