Ainda recordo a noite que foi a última em São Petersburgo. Uma noite branca de verão, em que um mortiço sol nocturno emprestava à catedral de São Isaac uma dignidade ainda maior e mais solene, uma massa escura contra um céu improvavelmente claro para a hora que fazia.
Agora que deixei a cidade, quem sabe para sempre, quase me culpo por não recordar com total exactidão todos os pormenores desse último dia, essa última ceia antes de partir para outro mundo. Partia então de vez para a Europa, e vim fixar-me em Praga.
De certa maneira, estar em Praga não significa necessariamente deixar a Rússia, da mesma forma que estar em Paris não significa ter deixado Portugal, tal é a presença dos nossos naquela cidade.
Dizia-me alguém este sábado que Praga alberga uns 30.000 russos. Há-os para todos os gostos e de todos os extractos sociais, desde trabalhadores da construção ou limpezas até homens de negócios e respectivas mulheres, regra geral não desagradáveis à vista.
Ouve-se o russo na rua com imensa regularidade. Os russos desde há muito que procuram a República Checa como destino de negócios e de lazer.
Karlovy Vary, a clássica cidade termal em cujas ruas e luxuoso hotel Pupp foram filmadas cenas do “OO7 Casino Royale” é uma Meca para os turistas russos.
No outro dia encontrei uma professora de língua checa que havia residido em São Petersburgo onde ensinou a língua, e agora ensinava checo aos jovens russos de Praga, filhos de executivos e de gente abastada. Algo agastada, queixava-se da inércia e pouca motivação dessa juventude folgada para o estudo da língua checa. A sua queixa não me surpreendeu.
Muita (não toda) desta juventude é filha ou neta de pessoas que conquistaram o sucesso económico de forma pouco clara, e cresceram com um conjunto de certezas e perspectivas para o futuro que não incluem ter que lutar para conquistar uma posição. Nasceram embalados numa rede de contactos que muito provavelmente lhes há-de garantir um futuro risonho.
Uma amiga contou-me uma conversa algo surreal passada num jantar elegante em casa de um milionário russo em Praga. O filho deste, na tenra idade de 18 anos, evidenciava já uma melancolia e fatalismo dignos de um rico e cultivado mas tristonho proprietário rural da Rússia de 1800.
Postulava o pequeno que os negócios eram um mundo de homens, e que mais tarde ou mais cedo iria casar com uma mulher atraente e que já sabia que ela pouco mais faria do que ser bonita (só isso é uma profissão por si mesma) e gastar o dinheiro dele (outra tarefa que exige dedicação). Fatalismo, privilégio e reduzida motivação parecem ser traços de personalidade desta juventude dourada que navega as ruas enfeitadas desta bela Praga.
Não é só a cor dos edifícios históricos que lhe dá o nome que cito no título; são também estes mestres do universo que a abrilhantam.
Com uma sociedade civil pouco interventiva no plano político e pouco exigente, a Rússia arrisca a estar a criar uma juventude muito mais propensa a manter a coisas como estão do que a ser a mudança que gostariam de ver.
Tudo o que é grande move-se devagar.
Nem tudo são reflexos dourados e sombras de fim de tarde.
No centro cultural russo de Praga houve recentemente uma feira anual de educação, em que várias escolas de língua russa oferecem formação de todos os tipos, e onde aproveitei para me reabastecer das várias iguarias que me sustentaram nestes quase quatro anos de vida em São Petersburgo.
É conhecido o respeito que a Rússia tem pela educação desde os tempos de Pedro.
Fico com a esperança que esta juventude venha a honrar a história da Rússia e que a faça brilhar tanto quanto as cúpulas douradas do Kremlin ao entardecer.