No aproximar da costa, onde a água fica mais clara, onde a areia já entoa o som das conchas e das ondas, onde as ondas são mais ondas e onde o reflexo do céu entoa a mais turquesa vontade de ser belo. Ainda calçado, salto do barco com a esperança que a terra firme me apare uma vez mais, que o Continente Mãe deixe novamente que a minha casa possa ser um recanto no espanto da sua firmeza.
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Antes de molhar os pés ainda cansados nesta praia, foram vários os anos seguidos de viagem, navegando à bolina das vontades, tentando contrariar as correntes das mais impediosas maldades. Trabalhando às vezes como gajeiro das equidades, outras como moço tarefeiro na bagunça do desentendimento político que deveria criminalizar a pobreza e não o faz porque não dá jeito aos gráficos reais. Imensas vezes tentei contrariar o silêncio do arfar dos ainda vivos ou o choro por consolar de mães que à beira da morte, não se consolavam com o a morte dos seus bebés. Não caminhei como as crianças no Congo com galões de água à cabeça por mais de 5 quilómetros para que nesse dia não morressem de sede, não me desnutri como os povos nómadas do sul de angola na seca extrema, não morri de doenças simples como alguns dos meus colegas de trabalho na Serra Leoa só porque não tinham acesso rápido a medicação igualmente simples, não sei o que é ter uma deficiência física ou mental e só por isso, ser dupla ou triplamente esquecido por um sistema que não o é.
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Também não fui discriminado por ser mais escuro que a cor que mais ordena, não fui para a cama com o estômago vazio como milhões de crianças vão todos os dias neste continente. Não sou nem senti o que milhões sentem e vivem todos os dias. Sou apenas um fiel cúmplice e activa testemunha de tantas destas estórias que não são sexys o suficiente para serem história. Sou um simples parceiro da memória dos esquecidos que na sua grande parte nunca sairão da escravatura existencial tão real e crua como os meninos que hoje vi a lutarem sem piedade, para ganhar o “direito” a um espaço de estacionamento em frente do café onde tenho o privilégio de me sentar.
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Hoje passei o Cabo-Raso das Tormentas, um cabo que não se fala muito, porque o desenvolvimento vem aí, o esquecimento do passado e do presente são politicamente incómodos, ou como um Vira vestido de centros comerciais e escadas de rolamentos com engrenagens “cor de pele”.
Continuarei sempre em estradas para lado nenhum que sempre me levam aos sítios certos, e desta vez, esta viagem que passou por tantas Áfricas na África Ocidental e Central, completa aqui o ciclo nesta imensa África Brutal. Hoje saltei do barco para a areia terna e fina da África Austral. Hoje cheguei à Ilha de Moçambique… onde sei que deixarei um pouco de mim, onde sei que aprenderei uma vez mais o gosto de não saber quem sou.
Quem salta borda fora de si e se aventura comigo na Ilha dos Amores?
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