“Estar morto é o contrário de estar vivo”, terá proferido a notória pensadora e socióloga portuguesa Lili Caneças. Eu, humildemente, discordo.
Tal como a guerra é a continuação da política por outros meios, segundo o general prussiano Carl von Clausewitz, também a morte representa uma continuação semelhante. Desde tempos imemoriais que o Homem tenta preservar sinais da sua passagem e dos seus feitos, caso os tenha, de forma mais ou menos notória. Estátuas, monumentos funerários e outras peças de arte davam corpo à memória do defunto, e alguns atingiram mesmo o estatuto sobrenatural de santidade, com efígies, relíquias e cerimónias em seu nome, propagando-o pelos séculos.
Nem sempre o morto tem uma palavra a dizer na forma como vai ser eternizado. Aposto que o Senhor D. José, primeiro de seu nome, sorrirá beatificamente do paraíso à vista da sua estátua equestre em armadura, coisa que provavelmente nunca usou, muito menos no campo de batalha. Ou o grande Eça de Queirós, eternizado com uma pequena de seios opulentos nos braços até ao dia do Juízo Final.
Na Rússia tudo se faz em grande estilo, e morrer não é excepção. Os poetas, ao que parece, fazem questão em morrer de forma espalhafatosa. Defeito profissional, quiçá. O imortal Pushkin morre dias depois de ser ferido em duelo pelo militar francês Georges d’Anthès, e Mayakovsky suicidou-se (diz-se que também poderia ter sido ajudado involuntariamente nessa tarefa) com um tiro de pistola.
Morte e incerteza, duas soturnas irmãs inseparáveis na história russa.
Três impostores diferentes reclamavam ser o “tsarevitch” Dmitri Ivanovitch após a morte de Ivan, o Terrível, mas só um conseguiu ser verdadeiramente o falso Dmitri e reinar até ser assassinado – tornando-se tão morto quanto o filho já morto de Ivan que afirmava ser. Após a execução da família imperial russa em Ekaterinburg em 1917, foi comunicada apenas a morte de Nicolau II e não da restante família, o que deu azo ao aparecimento de vários supostos herdeiros da casa imperial. Nessa mesma Ekaterinburg, cidade na fronteira com os Urais e baptizada em honra à imperatriz russa, onde a família imperial enfrentou a morte, há um cemitério famoso que alberga condóminos menos ilustres que os malogrados Romanov, hoje canonizados pela Igreja Ortodoxa. Trata-se do cemitério dos gangsters, conhecido por ser o lugar de descanso final de membros de dois gangs notórios que se digladiaram nos loucos anos ’90 nessa cidade.
Das várias peças de estatuária fúnebre que brotam desse chão sagrado, destaco uma que me foi referida por um diplomata acreditado em São Petersburgo, provavelmente ainda incrédulo daquilo que viu. Trata-se de uma estátua do meliante, em tamanho real, falando ao telemóvel, enquanto se apoia no capot de um Mercedes. Como as vítimas do Vesúvio, carbonizadas na posição em que se encontravam, assim quiseram que este indivíduo fosse eternizado, a meio de uma conversa que jamais terminará.
E assim o imenso chão russo alberga com igual bonomia os restos daqueles que detiveram por instantes as rédeas do poder na mão; tanto o Romanov, herdeiro de uma tradição secular, como o bandido, que rapidamente explorou (não durante muito tempo, pelos vistos) o vazio de poder que a queda do comunismo arrastou consigo.
Com maior ou menos legitimidade, o poder na Rússia nunca se esconde; a longa memória russa, tal como o seu solo, tem espaço para todos.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 105
Nas notícias por aqui: Membros da Parlamento Europeu no quadro da Comissão de Negócios Estrangeiros votou uma resolução que declara que certos meios de comunicação russos e do ISIS procuram destabilizar a Europa através de propaganda, bem como levar os cidadãos europeus a pôr em causa a aliança europeia com os Estados Unidos da América.
Números impressionantes: uma brigada de cerca de 70 gatos reside permanentemente no Hermitage (já desde o tempo de Catarina, a Grande, para eliminar os roedores que poderiam destruir algumas das peças em exposição.