Os recentes acontecimentos envolvendo o voo Emirates EK521 com destino ao Aeroporto Internacional do Dubai, dão o mote para este meu novo texto. Foi impressionante a forma como os tripulantes evacuaram em menos de um minuto todos os passageiros em segurança.
Comecemos por definir o que é um Assistente de Bordo, internacionalmente conhecido como Cabin Crew. Podemos descrevê-lo como uma espécie de médico, enfermeiro, bombeiro, psicólogo até, bartender, chefe de cozinha, empregado de mesa, enólogo, ama, assistente social, sociólogo e antropólogo. Com conhecimentos de meteorologia, mecânica, novas tecnologias e dietas alimentares. Tudo isto junto, misturado e muitas vezes aplicado ao mesmo tempo. E mais ainda. Acreditam que temos uma vertente de matemáticos, que somos por vezes santos com o dom da multiplicação das refeições, ou que possuímos uma bola de cristal, a juntar aos nossos poderes de vidente, que nos mostra os atrasos dos voos, se os passageiros vão chegar a tempo do seu voo de conexão, ou o nível de turbulência durante a rota. Somos um tudo em um.
Para perceber como é que esta máquina de guerra funciona (que é como neste preciso momento devem estar a adjectivar o assistente de bordo depois da descrição atrás feita), quando chegamos ao Dubai temos um intenso treino de quase dois meses antes de começarmos a voar.
Nas duas semanas iniciais, familiarizamo-nos com os aviões que estaremos licenciados a operar quando acabarmos o curso. Conhecemo-los por dentro e por fora, temos simuladores, treinamos situações de emergência e cenários de catástrofe. Somos preparados ao limite, para ser a voz de comando e o exemplo a seguir. Assertivos, rápidos e eficazes, aprendemos a tratar o avião por tu e reconhecemos a importância do espírito de equipa.
Segue-se uma semana de treino médico. Equipamento, medicação a bordo e efeitos. Doenças, sintomas e o seu tratamento. Para quem nunca se apercebeu, temos um mini hospital a bordo e estamos preparados para prestar primeiros socorros. Desde a alegria de fazer um parto, a ver a vida a fugir-nos literalmente entre os dedos. Acreditem, quando temos um passageiro já inconsciente e tentamos com massagem cardíaca e desfibrilhador reanimá-lo e não conseguimos, quando o músculo que é o coração deixa de responder ao impacto das nossas mãos e já não há mais nada ao nosso alcance a fazer, caímos num vazio difícil de explicar. Digo-o, infelizmente, por experiência própria. Nestes momentos, a máquina de guerra dá lugar a um comum mortal com sentimentos. Somos igual a todos os outros, com as mesmas fraquezas.
É esta excelência na nossa preparação que vemos na reacção ao acidente ocorrido a 03 de Agosto. 18 tripulantes evacuam 282 passageiros em menos de um minuto! Se fizermos as contas que um Boeing 777-300 tem 10 slides, e dividirmos os mesmos 282 passageiros pelos 10 slides num tempo de evacuação de 60 segundos, dá uma média de evacuação de pouco mais de 2 segundos por passageiro. 2 segundos! Se referirmos, no entanto, que nem todos os slides estavam operacionais e que as portas traseiras (à partida) terão sido mais utilizadas pela localização da classe económica, que transporta mais passageiros, então o tempo médio de evacuação por pessoa terá sido ainda mais rápido. Impressionante!
A principal palavra que me ocorre: Heróis!!! De sangue frio e instinto de sobrevivência aguçado, puseram em prática o que lhes foi ensinado em teoria. Sem medos, sem hesitações, sem nunca duvidarem de que eram capazes. Orientaram e lideraram os passageiros numa evacuação brilhante, rápida e sem fatalidades. E honraram o seu uniforme até ao fim, tendo sido os últimos a abandonar o avião. O resto já se sabe, o que tinha sido um avião ao serviço da Emirates durante 13 anos, virou uma imensa bola de fogo, à qual um dos bombeiros não conseguiu resistir, tornando-se na única fatalidade deste sofrido dia.
Antes de cada voo, a tripulação reúne-se numa sala de briefing para preparar a viagem. Conhecem-se todos os pormenores da mesma, instruções específicas, tempo de voo, entre outros factores relevantes para um dia de trabalho a concluir com sucesso. Quando no dia a seguir ao acidente fui operar um voo e entrei na sala de briefing, o ambiente era natural e obviamente tenso. Todos pensávamos no mesmo, nem era preciso falar para passar a mensagem. Estávamos assustados e incrédulos com o que se tinha passado. Aquela ideia de que o mal só acontece aos outros desmoronava-se. Tinha acontecido em casa. Em nossa casa. Mas quando a conversa surgiu, foi unânime o orgulho que temos nos nossos colegas, o respeito e admiração pela sua prestação. E a partir daí é fácil sorrir e olhar para o colega do lado e sentir que há confiança uns nos outros, há espírito de equipa e que actuaremos como um todo, seja qual for a adversidade criada, o obstáculo levantado ou a emergência vivida.
Importa, em jeito de conclusão, perceber que desde os primórdios da aviação que a vida de tripulante é vista como uma vida de sonho. Aliás, viajamos e conhecemos o mundo, sendo pagos para isso, ficamos nos melhores hotéis e temos um estilo de vida em grande. E para isso basta-nos fazer o quê? Alimentar os nossos passageiros e esperar que o voo acabe? Para irmos desfrutar de uma massagem em Bangkok, dos canais em Veneza ou do Carnaval no Rio de Janeiro? Não é bem assim. Por vezes apanhamos passageiros com um nível de humor diria eu mais instável, com exigências peculiares, com a paciência do tamanho de uma ervilha ou o ego do tamanho de um elefante. E nós, à semelhança de um bloco de plasticina, somos tão flexíveis que nos adaptamos a tudo.
O nosso relógio biológico há muito que… Esperem um pouco: relógio biológico? Já não sei o que isso é. Não há trabalho de segunda a sexta-feira, das 09 às 17h. Fazemos vôos de manhã, à tarde ou à noite. No Natal, Páscoa e Ano Novo. 24 horas por dia, 365 dias por ano. Às vezes não estamos próximos das nossas famílias quando elas mais precisam, falhamos momentos que nunca se voltarão a repetir. Tudo para vos receber a sorrir, garantir o vosso conforto e assegurar uma jornada o mais agradável possível. A hospitalidade e a excelência do serviço são as nossas imagens de marca, mas a segurança é a nossa real prioridade.
Por isso da próxima vez que olharem para nós, não pensem que somos empregadas a servir “chá, café ou laranjada”. Não carreguem no botão da campainha para fazer pedidos desnecessários, quando o objectivo primário desse mesmo botão é o alerta em caso de emergência. Não é o fim do mundo se o bife acabar e só tivermos frango, se a televisão não funcionar ou a internet estiver inoperacional. Apertem os cintos de segurança quando requisitado, mantenham-se sentados durante a ocorrência de turbulência e, depois da aterragem, levantam-se apenas quando o avião tiver parado por completo. Da próxima vez que entrarem num avião parem para perceber que à vossa frente até pode estar a mulher dos vossos sonhos, o príncipe encantado, um conjunto de caras bem jeitosas e cosmopolitas. Mas sobretudo, parem para perceber que à vossa frente está alguém que vos pode salvar a vida.