Já muito se gritou, já tudo se disse, já tudo se escreveu, sobre José Sócrates, a sua prisão, a sua presumida inocência, a sua culpa plausível.
Adiante. Espero pelo tempo da justiça que é um tempo com as suas próprias horas. E enquanto este não chega, nada de verdadeiramente inteligente tenho a dizer. Permitam-me pois uma deriva. Permitam-me que comente dois ou três temas, que só na aparência são laterais.
1 – Poucas pessoas suscitarão tanto ódio e tanta paixão em Portugal. Dir-se-ia, que nesta conversa, nesta ensurdecedora gritaria, não há, não pode haver, meios termos. Ama-se ou odeia-se. Jura-se uma coisa e o seu contrário. Justiça e cabala. Alegria e fúria.
Êxtase e pavor. O facto diz obviamente qualquer coisa de relevante sobre José Sócrates, a sua personalidade, o seu estilo e a sua governação. Mas também diz, e é isso que preocupa, alguma coisa de significativo sobre o País. Sobre a crispação reinante. Sobre o grau de animosidade profunda que se instalou, que se entranhou, na política e na sociedade. Desenganem-se. Não é só de Sócrates que se trata. É todo um País que adoece à nossa frente. Só não vê quem verdadeiramente não quer.
2 – Aliás, o profundo malaise, os sintomas da doença bipolar de que padece a República, ficavam bem patentes para quem, por estes dias, se dedicasse a navegar pelas redes (a) sociais. Numa e noutra direção, dum e doutro lado da barricada profunda, o insulto ferve, gratuito, visceral.
Seja porque se defende, seja porque se acusa.
O anonimato, mais estúpido ainda, a falsa sensação de anonimato, amplificam os sintomas e tornam incontornável o diagnóstico.
É verdade que as redes há muito deixaram de ser um espaço de sociabilidade minimamente sadia para se transformarem no esgoto por onde escorrem, a céu aberto, os instintos mais belicosos, as pulsões mais primárias. Mas, mais uma vez, desenganem-se.
Sócrates não explica tudo e a culpa não é toda do Facebook. Alguma coisa está mal, alguma coisa está profundamente mal, na República de Portugal.
3 – Cereja em cima deste deprimente bolo, faltava ainda o símbolo maior da desconexão dos cidadãos com a cidade. O País ainda mal acordara da surpresa e já meia dúzia de jovens pousavam, telemóveis em riste, para uma selfie em frente ao estabelecimento prisional de Évora. Dificilmente se arranja metáfora melhor para o estado de degradação do sistema de valores que é suposto ser o cimento de uma comunidade politica, de uma vida civilizada em sociedade. De onde seria natural que nascesse a preocupação com o amanhã, de onde seria natural que brotasse uma infinita tristeza, seja porque o homem desiludiu, seja porque nunca verdadeiramente iludiu, seja porque a política bateu no fundo, seja porque foi a justiça a fazê-lo, seguramente porque Portugal se arrasta na lama, há um grupo de jovens a olhar a vergonha como quem assiste a um reality show repugnante. Haverá imagem mais grotesca? Será que é assim tão difícil perceber que naquele instante, eternamente fixado, abundantemente reproduzido, o que verdadeiramente se vê é o futuro a fazer troça de si mesmo? Dir-me-ão que acordei em modo trágico. Talvez seja verdade. Talvez exagere.
Talvez onde vejo um caldo perigoso de crispação e um deprimente abismo ético possa ser o tempo e o lugar em que possa sobrevir alguma redenção. Oxalá assim seja.