Confesse lá. Ainda aqui há uns anos, a sua caixa de correio eletrónico era frequentemente inundada por “junk mail” sem particular nexo ou relevância para si. Especialmente irritante era aquele anúncio sobre as virtudes do “penis enlargment” com que você, como simples senhora ou como cavalheiro sem particular problema anatómico, era frequentemente bombardeado.
Se pensa que foi apenas a eficácia da sua nova firewall (perdoe-me tanto informático anglicismo) a correr com o irritante anúncio do seu ecrã, desengane-se. Se pensa que eu estou maluco e vou passar a escrever sobre mundanidades, desengane-se outra vez.
Permita-me que dê um passo atrás. Por razões profissionais passei boa parte da semana passada a visitar empresas tecnológicas em Silicon Valey. Um dos temas do momento é o chamado big data. A capacidade quase inimaginável que os sites ou aplicações que visita no seu pc, tablet ou telemóvel têm de recolher, guardar e tratar informação sobre a sua vida digital. Basta monitorizar meia dúzia de dias as suas viagens pela web, pelo mundo das aplicações ou das redes sociais para que se fique a saber quase tudo sobre si. Desde logo o seu sexo. Não é provável que, sendo cavalheiro, passe a vida a pesquisar sobre vestidos compridos ou a visitar sites especializados em baton e rimel. Mas com um pouco de inteligência e um algoritmo bem pensado é fácil definir padrões de visitas que, com alto grau de certeza, permitem inferir a sua idade, o seu estado civil ou até o facto de estar a precisar de mudar de carro. É inimaginável a quantidade de coisas que, algures na Califórnia, uma empresa de que nunca ouviu falar sabe sobre si. E são inimagináveis as formas diferentes como, hoje em dia, essa informação é recolhida. A coisa vai muito além do rasto que deixa na internet. Eu próprio assisti a uma demonstração em que o telemóvel com que ia fazendo pagamentos (uma realidade que está aí ao virar da esquina) falava em segredo com um sensor numa mercearia sendo que, num milésimo de segundo, ambos conspiravam para me propor, tratando-me simpática e educadamente por Mr. Norton, um molho em promoção só porque eu me dedicava a comprar alfaces. E agora sente-se. A Amazon, a quem você já reconhecia uma habilidade quase mágica de lhe propor um livro ou um filme mesmo ao seu gosto, prepara-se para começar a enviar-lhe encomendas que você ainda não sabe que precisa. Só porque o sensor da sua retrete a avisou que o seu papel higiénico acabou (e convenhamos que não é provável que tenha decidido abdicar para sempre do seu consumo). Mas o caso pode também dar-se com aquele ramo de flores que passa a vida a esquecer-se de comprar nos anos da sua amantíssima esposa. Se ainda tem dúvidas leia a The Economist que – coincidência das coincidências – chegou às bancas esta semana com uma ampla investigação sobre o tema.
Voltemos então ao princípio. A boa notícia é que você nunca mais verá aquele anúncio sobre “penis enlargment” de que, obviamente, não precisa. A má notícia é que a sua vida está monitorizada e escalpelizada a um ponto que você está muito longe de imaginar. E se isso levanta desafios (e oportunidades) imensos a um setor como o meu que vive amplamente da publicidade, a verdade é que essa não é sequer a questão mais relevante.
Eis-nos chegados ao ponto em que entra Locke. Qualquer liberal que se preze sabe que não há liberdade sem privacidade. Qualquer um de nós, com um mínimo de memória, sabe que todos os regimes totalitários da História se basearam na devassa da privacidade para controlar os cidadãos mais incómodos. Imagine o que faria Staline ou até o nosso velho Salazar com tecnologias destas. A coisa pode dar-lhe vontade de rir mas é mais séria do que julga. A distopia totalitária de Orwell está potencialmente aí à porta. As consequências destes avanços tecnológicos (que não foram obviamente concebidos com fins perversos) são inimagináveis para a nossa vida em sociedade e para as nossas comunidades políticas. Eis o meu conselho: enquanto medita no assunto, pense duas vezes antes de “postar” o seu estado de alma ou aquela fotografia da sua família em fato de banho no Facebook. Porque uma coisa é certa. Se não é você a fazer qualquer coisa pela defesa da sua privacidade, não espere que alguém em Silicon Valley o esteja a fazer por si.