Quanto mais depressa o mundo muda, mais vontade tenho de elaborar uma nova ordem de ideias para o governar. Afinal, para que servem os escritores, os poetas, os jornalistas e os músicos, se não for para contribuir para fazer avançar o mundo através do debate de ideias, de tomadas de consciência, da verdade e da arte?
Quando ia começar esta crónica, a Smooth FM que me acompanha nas aventuras da escrita desde há muito, passou uma sequência de slows dos anos 80: Phil Collins, Lionel Richie, Bee Gees, Chicago, America. Tinha em mente escrever sobre outro tema, mas fui assomada por um chamamento irresistível da nostalgia da minha adolescência e decidi corrigir a rota.
Porque é que já ninguém dança slow? Não percebo. Antes do slow existiram dezenas de estilos de dança de pares: valsa, tango, morna, rumba, lindy-hop, chachachá, swing, rock & roll, etc. Dançar a dois é um prazer sublime, eterno e único, é como cruzar os céus a voar baixinho. Todos os filhos gostam de dançar com as mães e todas as filhas adoram dançar com os pais. Dançar a dois é fácil, é empolgante e quando corre mesmo bem, pode ser apaixonante. Já dizia o Nietzsche, não acredito num Deus que não soubesse dançar. Nem ele nem eu.
O slow é um assunto sério para a humanidade, tal como é o namoro. Depois do hastag #eusonamoro, é urgente criar outro, #eusodançoslow. É preciso que mulheres e homens do planeta se organizem no sentido de recuperar as tradições de sedução que traziam alegria à condição humana e também alguma segurança, graças a uma noção que infelizmente se tem diluído cada vez mais nas relações amorosas ou pseudo-amorosas, a noção dos limites.
O ato de cortejar faz parte da natureza, está inscrito no património genético de muitos seres vivos, não é apenas resultado de uma aculturação que dita as regras dentro de uma determinada sociedade ou conjunto de indivíduos. Pavões, pinguins e moscas sabem do assunto. Moscas, isso mesmo. Aquelas irritantes e barulhentas, que ouvimos zumbir perto do cesto da fruta, são capazes de entoar hinos que deixam as suas parceiras loucas para acasalar. O som é produzido pelo movimento das asas que se estendem e vibram.
Moscas à parte, até porque nunca vi uma mosca dançar, serve esta crónica para chamar a atenção da importância do encanto do flirt e das manobras de sedução e da sua importância para subir os níveis de felicidade e de bem-estar no ser humano, das quais dançar a dois faz parte. Experimente chegar a casa e num serão em que as crianças adormeceram cedo ou estão em casa de amigos, ir ao Spotify e escolher uma playlist de slows, acender umas velas e puxar pela sua cara metade, e depois conversamos. E se o seu parceiro ou parceira não entrar na dança, então talvez seja um bom momento para parar e pensar se o que têm é uma relação a dois ou a gestão de uma PME cujo objeto social são os filhos, e já agora não esquecer que quando estes crescerem, lá a razão da união ao fundo.
Voltando à dança, talvez por sempre ter visto os meus pais a dançarem em muitas festas – quando eramos crianças, fomos várias vezes a restaurantes com pista de dança e ficávamos extasiados e vê-los rodopiar – não imagino a dança dos corpos na horizontal sem ser precedida de uma coreografia interessante na vertical, seja ela executada ao som de uma boa balada, ou sob o manto do mais profundo e belo silêncio, o silêncio sepulcral dos grandes momentos. O erotismo faz parte da dança amorosa, tal como a paixão faz parte do amor, a carne faz parte do espírito e a cabeça está ligada ao coração.
Numa época de polarização tão acentuada em tantos aspetos da sociedade, vale a pena repensar o cortejo e a conquista, dar espaço ao tempo e tempo ao espaço e recuperar antigos rituais de sedução: escrever cartas, enviar flores, fazer serenatas e claro está, voltar à pista de dança e dar tudo num rodopio a dois. E nunca esquecer que são sempre precisos dois para dançar tango. Se o seu par já não quer dançar, nem na vertical nem na horizontal, talvez já não seja o seu par.