O tempo é o maior ladrão, isso já todos sabemos, embora quem nunca tenha visto a ceifeira de frente esteja menos preparado para a brevidade da existência do que quem já lhe disse ainda não é desta, que é o meu caso
Na manhã de 25 de Abril de 1974, eu tinha 9 anos e preparava-me para descer o elevador e apanhar a camioneta de transporte do colégio quando o telefone tocou. Era alguém da família a avisar que estava a acontecer uma revolução. Fiquei chateada porque tinha uma paixoneta por um caixa de óculos da outra turma do meu ano que nunca soube do meu interesse. A essa hora, o alferes José Manuel Clímaco Pereira, com 24 anos, já ia a caminho do Largo do Carmo depois de ter estado estacionado no Terreiro do Paço com o seu Panhard, uma viatura de guerra de fabrico francês de 22 toneladas com 4 rodas de cada lado, desenhada para a guerra da Argélia, que tinha sido consertada durante essa Primavera com a colaboração de outros soldados, à revelia das chefias do Quartel de Santarém. Quando lhe perguntei como foi esse dia, ele respondeu, muito comprido, porque começou antes de 16 de Março quando o Movimento dos Capitães avançou para as Caldas da Rainha. A seguir, as altas esferas enviaram Vasco Lourenço e Melo Antunes para os Açores, na tentativa de tentar diminuir a força do movimento.
José Manuel não esquece o momento em que, depois de passar o Arco da Rua Augusta, viu as ruas da Baixa lisboeta já inundadas de populares eufóricos, e acredita que não houve ataque aéreo em frente ao Largo do Carmo pela forte presença do povo, embora um helicóptero tenha sobrevoado o local durante bastante tempo.
Tudo o que podia ter corrido mal, correu bem, comenta com um sorriso que lhe consigo adivinhar na nossa conversa telefónica. Na subida para o Carmo, a geringonça gaulesa foi-se abaixo, ele ordenou ao condutor, injeta-lhegasolina, temos de chegar lá acima, e a relíquia voltou a pegar. No dia 26 de abril, o mesmo Panhard começou a deitar fogo do tubo de escape e teve de ser rebocado por outra viatura. Se tal avaria tivesse ocorrido na véspera, tinha sido o caos e podia ter provocado a guerra no largo do Carmo. Não aconteceu. Os astros estavam alinhados para o triunfo da Revolução dos Cravos dentro dos canos de espingardas e os brandos costumes mostraram o que valiam.
Existem sempre pequenas histórias à margem do que fica para a História. Sim, é verdade que a coluna de viaturas constituídas por Panhards e Chaimites parou em vários semáforos na Avenida da Republica, porque era quinta-feira, um dia normal com o trânsito que se espera, e só quando Salgueiro Maia deu indicação para ligar as sirenes e seguir sem paragens é que a coluna se comportou em modo de ofensiva miliar. Nessa noite, a caminho da capital, José Manuel lembra-se de ver a coluna atrás de si na subida da Vialonga com mais de 30 viaturas e 240 homens. Chegara finalmente o dia que Sophia de Melo Breyner eternizou nos versos, “Esta é a madrugada que eu esperava, o dia inicial inteiro e limpo.”
E como era o amor no 25 de Abril? As meninas casavam cedo, tinham esse sonho, ficar solteira era ficar para tia, ser encalhada, uma vergonha que ninguém queria. Quando se viam nessa situação, na alta burguesia, era comum uma tia caridosa fazer um cruzeiro com a donzela para lhe arranjar um marido. Muitas casaram em vésperas da partida do seu amor para a Guerra no Ultramar. Salazar tinha encerrado os prostíbulos há pouco mais de 10 anos, pois sempre considerou que, enquanto os homens andassem distraídos com os prazeres da carne, não se interessariam por questões políticas.
Para quem é filho do 25 de Abril, como eu, Portugal mudou, mas à velocidade de um caracol preguiçoso. Parece que a brandura é irmã da lentidão. Ser uma boa esposa e uma dona de casa prendada era uma obrigação vista como natural naquela época e acredito que hoje, 45 anos depois, no fundo ainda é. Ainda existem muitos homens, em todas a gerações, que preferem uma mulher submissa e sossegada, com assimetria de poder económico, em vez de uma mulher independente e com solidez financeira. Gostava muito que isto não fosse verdade, mas o número de mulheres sozinhas e independentes que conheço com mais de 30 anos que me contam histórias muito semelhantes de estados de solidão depois de relações falhadas é muito superior ao número das que casaram e/ou se mantêm casadas.
Em 74 dar um beijo com língua antes dos 12 anos era uma ousadia, (nunca me aproximei do rapaz da outra turma, nem tal me passou pela cabeça), a virgindade era guardada como um troféu, ou negociada num namoro sério, depois de alguns meses de estabilidade. Poucos anos depois, lembro-me de perguntar ao meu pai se podia ir beber um café com um colega do Liceu e receber uma palestra sobre os homens que se divertem com as fáceis e casam com as outras. Tinha 13 anos e depois de o ouvir, respondi, mas eu gosto de outro, este é só um amigo com quem vou beber um café na pastelaria da esquina, que por sinal tinha umas torradas espetaculares.
45 anos depois, ainda há homens que continuam a confundir rapidez com facilidade e que separam as que são para se divertirem das que são para casar como quem separa roupa branca com a de cor, mesmo que sejam apaixonados pelas primeiras e mal tolerem as segundas. Infelizmente assisto com frequência ao equilíbrio frágil destas estruturas conjugais, presas com os arames da aparência, mantidas a qualquer custo, apesar das mentiras e das traições, apesar de tudo.
Citando o alferes José Manuel, aquele dia podia ter corrido mal, mas felizmente correu tudo bem. Aquele Panhard, consertado com engenho de mecânicos e peças retiradas de outros veículos congéneres, estava preso por arames e ainda assim conseguiu subir ao Carmo. Existem muitos casamentos em pior estado que se vão mantendo, porque a pressão social e as dificuldades financeiras não permitem que as pessoas se separem. Se são infelizes para sempre ou vagamente felizes, é um mistério que só quem lá está, poderá responder. Talvez o medo da solidão e do desconhecido vença tudo. Naquela madrugada os Capitães não tiveram medo. Mas o medo é o avesso da vontade e como a vontade e o amor são gémeos, só avança quem não teme.
O amor no tempo do 25 de Abril talvez fosse vivido com algum medo por causa do peso terrífico da moral salazarista que Marcelo Caetano tentou perpetuar. Mas esse medo de mudança, essa resistência a tudo o que é novo, diferente, e que desafia a moral vigente e aquilo que parece bem, ainda se sente na sociedade portuguesa. Existe uma tentativa de modernidade, mas quando chega a hora da verdade, cada um só é moderno para aquilo que lhe interessa, mantendo o espírito conservador para o que mais lhe convém. Até quando?
Espero viver anos suficientes para assistir a uma diferença de atitude nas novas gerações, porque a minha ainda está a pagar caro e com juros a independência e o sucesso.