Tem sido comovente assistir à coesão nacional em torno da luta contra a Covid-19. No início, quando havia mais casos no norte do País, o sul abanou a cabeça em sinal de reprovação. Aquela gente do norte, realmente, não sabia comportar-se. Agora, que há mais casos a sul, no norte já se lamenta a irresponsabilidade dos sulistas. Sou um grande apreciador de xenofobia, cujo potencial cómico me encanta. A ideia segundo a qual, por nascermos de um lado ou do outro de um risco, adquirimos certas características sempre me pareceu engraçada. Mas esta xenofobia inter-regional consegue ser ainda mais hilariante. É gente do mesmo país, ainda para mais de um país muito pequeno, que arranja maneira de se considerar superior a quem nasceu noutra freguesia, uns metros mais para baixo. Deve dar trabalho – e esse é capaz de ser o melhor argumento contra a discriminação. Discriminar requer um esforço que eu sou demasiado preguiçoso para fazer. A segregação tendo em conta a cor da pele já me parece demasiado cansativa: ir buscar o Pantone, comparar a pele do outro com a minha, determinar quantos tons de bege acima do meu é que o potencial discriminado tem a desfaçatez de ostentar, dar o desconto para o bronzeado, no verão, e passar a discriminar de acordo com esse cálculo, é trabalhoso. Embirrar com a área geográfica já envolve mapas, e com isto das uniões de freguesias uma pessoa ainda dá por si a discriminar-se a si própria, o que é aborrecido (embora, no meu caso, justificado).
O mesmo fenómeno aconteceu quando, nos primeiros meses, se dizia que os idosos não respeitavam o dever de recolhimento. Era uma inconsciência dos idosos, dura e justamente punidos na internet com azedos memes. Agora, vão aumentando os casos entre os jovens, e é a inconsciência juvenil que os memes castigam. Além da geografia e da faixa etária, houve outros pretextos para divisão. Quando os sindicatos organizaram a manifestação do 1º de Maio, vi vários católicos a insurgirem-se contra o desrespeito pelas regras de afastamento social. Um mês depois, a propósito do foco de infecção no Santuário de Fátima, imagino que haja sindicalistas indignados com a incúria dos crentes. Eu, que sou uma pessoa de meia-idade, ateu e não-sindicalizado, tenho estado muito bem. Até porque, quando havia mais casos no norte, refugiei-me na minha qualidade de lisboeta, e agora que há mais casos no sul, recordei a todos que a minha família é do norte. Não sou culpado de nada, o que é excelente – e raro.