Café Corcel, esplanada no passeio, uma daquelas manhãs em que não está calor nem frio, antes pelo contrário, ou antes, está calor e frio ao mesmo tempo, na mesa ao lado três portuenses discutem protestantismo e capitalismo, digo portuenses porque não poderiam ser de nenhuma outra geografia que não esta, aqui nesta zona da Boavista o template portuense não engana nem deixa enganar, it takes one to know one, falam dum qualquer livro sobre a influência do protestantismo no capitalismo e isso interessa-me, aponto o nome do livro num Google Doc com a convicção de quem sabe desde logo que a probabilidade de entretanto se meterem outros assuntos e de o livro nunca chegar a ser lido por mim é alta, quase toda, sinto-me um bocado intrusivo, não faço de propósito por me interessar pelas conversas das mesas do lado, mas interesso-me, poucas coisas me despertam tanta atenção e interesse, conto a quantidade de senhoras velhinhas que entram e saem do café amparadas por filhas, irmãs mais novas, sobrinhas, não sei, não há como saber, a terra reclama as senhoras velhinhas de volta através das implacáveis leis do tempo e da gravidade, e as filhas, irmãs mais novas, sobrinhas, não há como saber, não deixam, amparam, resistem, dificultam a vida à vida e à morte, a Ana repara nas sapatilhas de uma dessas senhoras velhinhas e são umas sapatilhas modernas, boas, confortáveis, não parecem pertencer àqueles pés, olhando só para aqueles pés a força da imaginação obrigar-nos-ia a completar o que falta por ali acima com outra pessoa qualquer, nunca uma senhora amparada de cada lado, a senhora que está a tomar conta do café reconhece-me, somos primos afastados, ela é dos Araújos de Rio Tinto e eu sou dos Araújos de Águas Santas, fazem fronteira, fazemos fronteira, trocamos números de telefone, não fazia ideia de que tinha uma prima a tomar conta do Corcel, lembro-me de que o Rui Veloso me contou que conheceu o Zé Nabo no Corcel, que acaso, que encontro tão importante, tão determinante para mim, e, de repente, ocorre-me de que dali vou para o Palácio para participar nos concertos de 40 anos de carreira do Rui Veloso, segunda noite, ainda na noite anterior me distraí em palco, não entrei bem na música porque estava a olhar para o Zé Nabo a tocar com as cordas do baixo ao contrário, já sabia, mas outra coisa é estar ali a ver aquilo a acontecer de perto e a imaginar o Zé Nabo a entrar pelo Corcel adentro, anos 70, alguém terá dito ao Rui Veloso “olha, aquele é que é o Zé Nabo”, e eu ali no palco, no meio dos dois, como é que pode ser uma coisa destas.
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