“A pandemia está a atrasar um relacionamento que eu esperava que me acontecesse… e o tempo está a passar e nada acontece” (Maria, 35 anos, single)
Disse-me a Maria em consulta, e dizem muitas outras mulheres e homens que desejam encontrar alguém para namorar. A Maria tem 35 anos, vive sozinha em Lisboa, tem uma carreira de sucesso no campo das leis, e tinha uma vida social intensa entre os amigos do teatro, os da música e os amigos dos amigos que ia conhecendo. A Maria é uma mulher inteligente, culta, sofisticada e atraente, como tantas outras que desejam encontrar alguém para uma relação comprometida. A Maria procura um parceiro para partilhar a vida, e que não se sinta ameaçado pela sua autonomia, “alguém que me acompanhe, um companheiro de viagem”. As experiências anteriores não tiveram sucesso e o tempo está a passar. A Maria tem sucesso em todas as esferas da sua vida, tem uma casa, autonomia económica e emocional, muitos amigos e uns horizontes largos. A Maria tem tudo, mas ao mesmo tempo sente que tem a vida parada: “Estão a roubar-me tempo de vida… Como é que eu vou encontrar alguém…!?” A Maria é frequentemente assolada pela tristeza e valentes neuras, que muitas vezes se sobrepõem aos momentos felizes. Perante a falta do amor tudo o resto perde importância.
A sensação de perda de tempo e de oportunidade, bem como a perceção de ter a vida parada – apesar de ser bem-sucedida nas outras esferas da vida – mostra como o amor e o bem-estar relacional são essenciais na nossa vida. Estes tempos de privação do abraço e da interação física, da paixão e do sexo, vêm confirmar inequivocamente o que sempre soubemos: que o amor e a sexualidade são bens de primeira necessidade. Somos seres feitos para o contacto físico e amoroso com outros seres humanos e a privação disto traz sofrimento.
“Já não tenho paciência para aquilo do swap à direita e à esquerda [no Tinder]… Estou farto de match e conversa da treta tipo ‘então o que procuras aqui’…já não me apetece fazer a seleção e entrar em conversas”. (João, 38 anos, heterossexual, single)
A pandemia tornou a procura de parceiro mais difícil do que antes, mas antes já havia problemas. De certa forma, a pandemia apenas exacerbou os problemas que vinham crescendo nos últimos anos. Falo nisto no livro “Em defesa do Erotismo” editado pela Saída de Emergência (http://www.saidadeemergencia.com/produto/em-defesa-do-erotismo/).
As aplicações de telemóvel são agora uma das poucas maneiras de conhecer pessoas, mas estão longe de resolver o assunto. O João sempre as usou e chegou a dizer-me que fazia like em todas as possibilidades que a aplicação lhe apresentava, e depois fazia a seleção nos matchs que obtinha. Esta estratégia poupava-lhe tempo e acelerava o processo, e o João tem de pouco tempo. Todos temos menos tempo para tudo nestes tempos modernos em que o imediatismo é um valor maior (infelizmente, na minha opinião). O João é gestor numa multinacional, com uma vida profissional frenética, sobra-lhe pouco tempo para a vida social intensa que também gosta de ter. Já viveu fora de Portugal e teve muitas relações eróticas “casuais” arranjadas no Tinder. O João já consegue admitir que no campo do amor, é um homem de “acesso difícil” – como ele diz – e com dificuldade em construir uma relação de intimidade, digo eu. E durante muito tempo, estas aplicações foram facilitando a sua tendência para relações “exclusivamente sexuais”.
Mas o João está a ficar saturado do Tinder, “já não tem paciência” e começou a ser mais selectivo. É mais criterioso na escolha e a iniciar uma conversa e só avança para um encontro real se gostar mesmo da pessoa e se tiver conseguido uma escalada de intimidade satisfatória. “Tenho que admitir que eu quero mesmo é ter uma relação significativa com alguém (…) e devo ser mais honesto comigo próprio e ter conversas mais profundas para desenvolver essa relação”. Este homem ficou mais consciente da sua dificuldade em deixar o outro entrar e do medo de ficar vulnerável. O amor às vezes dói.
O CEO do grupo Match que possui dezenas de aplicações de encontros refere que se verificou um aumento no número de assinantes no último ano mas que o ritmo do dating está a diminuir. Ou seja, as pessoas estão a tornar-se mais selectivas e intencionais sobre o que procuram. Isto terá levado a uma diminuição do ghosting – o abandono inesperado de uma conversa, ou de algo que se combinou, sem dar explicações – uma atitude que revela um total desrespeito e objetificação do outro.
Este tempo estranho de afastamento social tem ajudado a perceber melhor o que se quer e o que não se quer. Há agora maior intencionalidade no dating. Essa intencionalidade revela-se de várias formas, por exemplo, estabelecer interações com menos pessoas ao mesmo tempo, não disparar em todas as direções, ser mais claro sobre o que pretende, e dar mais valor e intenção a cada encontro offline.
As aplicações põem pessoas em contacto que não se encontrariam de outra forma e aceleram as interações mas isto não é suficiente nem resolve nada. Arrisco-me a especular que muitas pessoas começam a ficar fartas de “folhear” menus de perfis e catálogos de fotografias para gostar ou não gostar, e começam a desejar a interação física tradicional com alguém que se conhece num bar, num concerto, em casa de um amigo, numa festa, onde a coisa flui e o efeito surpresa se manifesta, do tipo, “e logo naquela noite que não esperava conhecer ninguém… foi totalmente inesperado”. O efeito surpresa continua a ser uma componente importante do erotismo.
“Preciso de tempo para me sentir mais envolvida emocionalmente antes de avançar para o sexo… sinto-me insegura… e agora não tenho oportunidades de estar com ninguém…”. (Valéria, 33 anos, heterossexual, single)
A Valéria tem 33 anos, é descontraída e calma, trabalha com doentes críticos, o que a obriga por vezes a tomar decisões que separam a vida da morte, e abraça a sua profissão com confiança. Mas esta confiança robusta no contexto profissional não trespassa para a esfera sexual e amorosa, onde se sente um patinho feio, inseguro e incapaz de voar. É uma bela mulher, alta e elegante mas na sua mente sente-se pequenina e insuficiente. Também usa aplicações de encontros e no seu perfil revela o seu metro e oitenta de altura, não com orgulho, mas por insegurança. A auto-imagem negativa acompanha-a desde a adolescência, por ser muito alta.
A Valéria nunca se sentiu descontraída nas relações sexuais. Nunca valorizou o prazer sexual por ter dificuldade em consegui-lo. Sente-se inibida, insegura e incompetente. “Não estou à vontade … sinto-me inexperiente”. A Valéria refere precisar de mais tempo antes de chegar ao sexo. Tempo para conversar, para conhecer o outro, tempo para sentir. Como muitas outras mulheres – mas não todas -, a Valéria precisa de um contexto emocional para se predispor ao sexo.
Neste contexto de distanciamento físico e privação social, a falta de oportunidades para encontrar um parceiro pode acentuar as crenças negativas que a pessoa tem sobre si própria. Por exemplo, a crença de não ter valor para alguém se interessar por si, acreditar que não é suficientemente interessante e atraente, ou a crença de ser incompetente sexualmente. Isto pode trazer um sofrimento considerável e muitas vezes silenciado.
A Valéria sentia-se sozinha e desamparada. Decidiu reciclar o ex-namorado, com quem já tinha uma intimidade conhecida e segura. Voltar a um ex-namorado dá uma perceção de haver menos risco de transmissão o que é, obviamente, uma ilusão.
Alguns estudos já mostraram que as pessoas que se sentem mais vulneráveis e com mais medo da doença, estão menos predispostas para uma relação amorosa. Por conseguinte ficam mais isoladas, mais sozinhas e com maior risco de desenvolverem um quadro de ansiedade ou depressão. É importante estar alerta para alguns sinais e procurar ajuda psicológica ou médica. Sintomas como apatia, falta de energia e de motivação, dificuldade em dormir, perda de interesse e prazer pelas coisas da vida ou agitação interior, são alguns exemplos.
Perguntavam-me se eu acho que esta pandemia vai mudar os nossos hábitos e se vamos deixar de beijar e abraçar. Não acredito de todo que isso vá acontecer. O ser humano é feito para o contacto físico e emocional com outros seres humanos. O beijo e o abraço são expressões intrinsecamente humanas e fundamentais ao nosso bem-estar.
Esta pandemia tem posto muita coisa às claras. Já terá deixado muitos casais à beira da ruptura por serem obrigados a mais contacto e tempo juntos. Por outro lado, aos que estão sozinhos, tem trazido maior consciência da necessidade de conexão amorosa, de partilha, de sexo e de intimidado. É bom esclarecer o que queremos, para o podermos encontrar.