“Deus, Religiões e (in) Felicidade” foi pretexto para mais um encontro entre dois amigos – o padre católico Anselmo Borges convidou-me para apresentar este seu novo livro. Entre muitas qualidades que admiro no Padre Anselmo, gosto da forma como coloca as questões seminais nesta obra e da forma como tem vindo a divulgá-la. Por um lado, num mundo onde o laicismo exacerbado vem empurrando as religiões cada vez mais para a esfera do privado e as questões existenciais e divinas deixaram de poder problematizar-se nos meios académicos, sistematizar um pensamento religioso e colocar questões de profundidade existencial e divina, assim como de saberes e práticas instituídas na igreja católica e no mundo islâmico, é um feito invulgar mas muito importante. Em segundo lugar, como não lhe interessa que haja apenas palavras doces e simpáticas sobre o seu livro, quando, na verdade, o que lá está são questões sérias, humanamente genuínas e merecedoras de reflexão aprofundadas, Anselmo Borges tem vindo a convidar crentes e não crentes, muçulmanos, judeus, laicos e outros, desde o continente até às ilhas, para que se sentem à mesa e debatam Deus, Religiões e a Felicidade ou Infelicidade.
A experiência que tive, uma vez no Casino da Figueira, e outra em Vila Nova de Gaia, fez pensar em pelo menos dois pontos importantes.
Em primeiro lugar, uma conversa sobre religiões, teologia, e sociedades humanas, entre um padre e uma muçulmana, um diálogo que seja aberto e franco, só é possível entre mentes abertas, maduras, pluralistas, inclusivas. Contudo, este tipo de diálogo só se torna possível quando sabemos que ambos somos filhos de uma cultura ela mesma inclusiva e pluralista. Portugal, e os católicos portugueses são de uma abertura ímpar ao diálogo com intelectuais de outras confissões religiosas. Não é vulgar, salvo em meios académicos muito excepcionais, religiosos e seculares, que os muçulmanos se juntem a intelectuais religiosos e que debatam as questões que Anselmo Borges coloca neste livro. Questões como “Quem Somos? Donde vimos? Para onde vamos? O que é que esperamos? O que é que nos espera? Porque se deve fazer o bem e não o mal? Acaba tudo na morte? Qual é o Sentido último da existência? Têm os mais pobres, as minorias ou as mulheres um lugar nas instituições religiosas? Que papel desempenha a reflexão teológica ou filosófica no interior da comunidade crente?”, são questões raramente colocadas, ou se são, são respondidas com “verdades” assentes em leituras dogmáticas das escrituras sagradas.
No Islão, os muçulmanos fecharam as portas à ijtihad[1] desde o século XIV; entraram a idade das trevas e do desconhecimento a partir da morte de Averróis. A Europa, por seu lado, partiu exatamente de Averróis e tirou proveito dos pensadores, matemáticos, filósofos, poetas, e escritores seus contemporâneos, para construir a sua época das Luzes, e do Humanismo Renascentista. Vários outros factores têm vindo a contribuir para que a maior parte do mundo muçulmano não tenha registado substancial avanço na intelectualidade e raciocínio independente e lógico relativamente aos assuntos da fé e das leis religiosas. Uma das consequências mais negativas deste retrocesso histórico é não só o de impedir que haja espaço para o tipo de questionamento que Anselmo Borges coloca no seu livro, como não ter segurança ontológica para debater estas questões com interlocutores de outras confissões religiosas. E a forma mais infeliz de resposta a este tipo de desafio, que a maior parte dos muçulmanos usa para defender o seu desconhecimento, é a de responder dogmaticamente, e muitas vezes irracionalmente, às mesmas questões que Anselmo Borges coloca.
O segundo aspecto que importa salientar desta experiência de debate tem a ver com a forma como problematiza o Islão. Para o Padre Anselmo, os muçulmanos terão sempre um problema na construção de uma religião de paz. Para ele, o Islão tem um problema que precisa resolver: o da separação entre Estado e Igreja. Mas mesmo que o consigam fazer ele está convencido de que o Islão não será nunca uma religião de Paz porque o seu fundador era um homem violento que promoveu essa mesma violência.
As afirmações de Anselmo Borges, que merecem um capítulo dedicado ao Islão, não são novas; são até comuns, infelizmente. O que me parece importante reconhecer é o mérito em não só levantar estas questões abertamente, mas também em receber, de forma aberta, as minhas argumentações sobre a visão errada que construiu. Mais, direi até que o maior mérito do Padre Anselmo, creio eu, é o de, ao ter-me convidado a apresentar o seu livro, levar-me a mim a pensar no estado da arte dos estudos islâmicos em Portugal e a concluir que é deplorável, triste, perpetuador das maiores lacunas para o entendimento das religiões monoteístas e para os povos moldados pelas culturas religiosas monoteístas.
Maomé não é o profeta da guerra nem da violência que hoje vivemos no mundo. Como não poderei aqui falar da história do surgimento e dos desenvolvimentos do Islão, importa saber pelo menos alguns pontos de partida para estudos posteriores: 1) que Muhammad (Maomé) conheceu as fés abraamicas a partir do contacto com dissidentes do judaísmo e do cristianismo ortodoxo que circulavam na arábia pré-islâmica e que fizeram despertar no Profeta o interesse em conhecer mais sobre as religiões do Deus Único, transcendente e da Unidade; 2) que Maomé não era iletrado (i.e. sabia ler e escrever perfeitamente) e que o milagre, a existir, foi o da própria revelação e profecia que só reconheceu ser a sua, a partir do momento em que um monge cristão, tio da sua mulher, Khadija, lhe confirmou; 3) que o Alcorão, revelado durante 23 anos, nunca refere Islão como o nome de uma religião, mas como a forma como o crente se submete à vontade de Deus, desde o tempo de Adão até ao último profeta; 4) que a Revelação qurânica ( qur’an significa recitação; portanto oralidade, com tudo o que a oralidade humana implica) vem anunciar um novo tipo de ideologia grupal, a de fraternidade de fé, contrariamente à de fraternidade de tipo tribal, o que faz colidir muitos interesses económicos e políticos da época e que Reuven Firestone[2] explica como sendo factores de inviabilidade eminente da sobrevivência de uma nova religião ; 5) que o Alcorão foi compilado cerca de 200 anos depois da morte do profeta Maomé e que resultou de um trabalho de edição, abrogação e ajuste, já fora do tempo de vida do próprio Profeta; 6) que a espada, ou a guerra e violência, não convivem bem com o avanço de 500 anos de conhecimento e ciência; 7) que os califados Xiitas dos primeiros séculos do Islão foram os que proporcionaram o Humanismo e o Renascimento no Islão, nos século XI, XII e XIII, antes de a Europa a ter vivido no século XIV ( ver Joel Kraemer); 8) que a grande cisão entre xiitas e sunitas tinha que ver precisamente com a dificuldade em juntar a liderança política à pratica da fé deixada por Maomé, e que por isso, só depois da criação europeia da ideia de estado-nação é que passou a haver promiscuidade entre Estado e Igreja em alguns países muçulmanos, e, para não alongar mais esta lista, que 9) a decadência no Islão tem raízes no século XIV com a sede de poder e dominação de alguns líderes de califados muçulmanos que impediram a continuidade da ijtihad (porque saber é poder!), em concomitância com a expulsão de judeus e árabes da península ibérica, em meados do século XV, e a viragem mercantil do mediterrâneo para a rota do Atlântico, a partir da descoberta das Américas. Daí até aos dias de hoje, o mundo está marcado pela desastre das inúmeras ocupações e pelo imperialismo ocidental sobre povos predominantemente islâmicos, e pelo apoio oferecido pelos primeiros às potências económicas com interpretações de um islão radical e integrista, hegemónico e exclusivista que consegue ganhar cada vez mais adeptos junto de camadas sociais particularmente ignorantes e vulneráveis a extremismos.
E para tornar as coisas ainda menos fáceis, precisamos de repensar o seguinte: a palavra Islão aparece repetida no alcorão apenas 138 vezes enquanto o conceito Allah (i.e. Deus) aparece 2698 vezes! O que terá acontecido na história para que muçulmanos e não muçulmanos tenham invertido os números e a relativa importância dos conceitos? Ou seja, porque é que Deus perdeu a importância central que Maomé lhe teria atribuído para falar na Unidade humana como espelho da Unidade Divina, e uma ideologia terá tomado relevância para dividir o mundo? Afinal, se Maomé convidou os muçulmanos a rezar virados para Jerusalém antes de se ter virado para Meca, quando é que Judeus e Cristãos aceitaram o islão como parte da tradição abraamica?
É uma rejeição recíproca; um diálogo difícil. Uma conversa que só é possível, quando um padre católico convida uma muçulmana xiita para uma conversa a sério.
[1] Uso da Razão independente
[2] Jihad and the Origins of the Holy War