Apesar do enorme desenvolvimento social e económico dos últimos anos, ainda existem muitas famílias portuguesas onde se saltam refeições por não existir comida suficiente em casa. Estas formas mais extremas de insegurança alimentar, ou fome, coexistem com outras menos extremas, onde se esticam orçamentos ou se recorre a comida de muito má qualidade e com excesso de calorias para obter a necessária energia ao fim do dia.
O problema não é só português e atinge muitos outros países europeus. Segundo os dados do estudo “Infofamília” da DGS, em Portugal e na amostra que representava famílias que frequentavam o Sistema Nacional de Saúde, 1 em cada 14 famílias tinham um problema grave no acesso aos alimentos.
O problema deve-nos preocupar, pois a nível europeu este tipo de situações são geralmente pouco divulgadas, dado que colocam em causa todo o modelo de desenvolvimento económico europeu. Não me recordo de a nível político e de modo próprio, esta situação ser debatida nos fóruns europeus, a não ser a pretexto de efemérides ou por iniciativa de ONG’s. Por outro lado, as soluções apresentadas, através de programas alimentares especiais, dos bancos alimentares ou através de instituições de caridade, não tratam a causa fundamental da fome: a incapacidade para pagar os alimentos. Ao mitigarem o problema, oferecendo alimentos, não resolvem a incapacidade das famílias para gerirem o seu parco orçamento alimentar. Neste caso, e mais do que nunca, é necessário ensinar a pescar para além de oferecer o peixe.
Neste sentido, têm aparecido diversas iniciativas pelo mundo fora, onde a par da distribuição de comida para as famílias mais carenciadas, surgem também programas de apoio à confeção, conservação e reaproveitamento dos alimentos, através de nutricionistas e outros profissionais de saúde. São programas ambiciosos, que interligam a componente técnica com a componente humana. Mas para o fazer é necessário um investimento humano e de tempo que nesta era da tecnocracia está muito afastada dos profissionais de saúde híper especializados e dos orçamentos vocacionados para pagar equipamentos médicos e medicamentos.
O segundo obstáculo a passar é o económico. A União Europeia possui diversos programas de ajuda alimentar, tal como acontece nos Estados Unidos da América, onde os grandes contribuintes são a indústria agrícola e alimentar em que os géneros alimentícios frequentemente disponibilizados são os que se conservam melhor e que resultam muitas vezes de excedentes da própria indústria. Infelizmente, e em muitos casos, esses alimentos são nutricionalmente pouco interessantes e hipercalóricos, contribuindo para o aumento dos casos de doença crónica (particularmente diabetes e doença cardiovascular) nas populações recetoras desta ajuda a longo prazo.
Como se não bastasse, existe ainda um terceiro obstáculo mais recente. Os “pobres alimentares” estão cada vez mais imprevisíveis. Já não são apenas as famílias rurais que tiveram uma má colheita, mas são cada vez mais as famílias urbanas, escolarizadas, com um ou dois desempregados no agregado, onde se mantêm os encargos com filhos ou com a habitação e onde a alimentação é a única parte do orçamento que pode ser esticada à exaustão. Famílias ou idosos a viverem sozinhos, que só em última instância pedem ajudam alimentar, mas onde a malnutrição está presente com consequências trágicas.
Impõe-se um novo paradigma de apoio alimentar, não descurando os modelos tradicionais onde a igreja e o setor da economia social são vitais. A ajuda alimentar necessita de ser cada vez mais promotora da saúde e não apenas distribuidora de calorias com pouco valor nutricional e com pouca supervisão. Deve criar sistemas que permitam a participação da agricultura e agro-indústria nacionais no apoio aos mais necessitados. Sempre que possível deve incorporar produtos frescos e da nossa tradição alimentar. E sobre toda esta oferta deve poder existir espaço para a capacitação dos que recebem ajuda alimentar, para serem capazes de produzir refeições saudáveis mas adequadas ao seu gosto e cultura.
Por fim, a insegurança alimentar, pode a cada momento bater à porta de qualquer um de nós. O treino para a compra, conservação e reaproveitamento de alimentos e a produção de refeições baratas mas saudáveis, dentro da nossa tradição gastronómica, pode ser treinada desde cedo,na escola, sem medo. Um desafio para o nosso futuro e para a nossa sobrevivência.