Apesar de ter tido um pai que veio inquestionavelmente do futuro, e que, portanto, só por mero lapso da continuidade espaço-tempo do universo veio nascer, ao virar do século XIX para XX, numa aldeia com vista para o maciço da Gralheira, a minha mãe sempre teve em fraca conta os exemplares do sexo masculino, sobretudo quando o foco da discussão é o contributo do seu simplório cromossoma na parentalidade e na vida de uma criança.
A coisa não suavizou com o tempo. Nem mesmo a obstrução de um vaso sanguíneo que, em Outubro, mudou muitas coisas na sua vida, que lhe roubou a fala (quase totalmente recuperada), o paladar, o olfacto e a capacidade de escrever, abalou estas suas certezas, que remói com um fervor quase religioso.
Estas são as profundas convicções da minha mãe, as regras que ela instituiu no seu principado matriarcal, esse berço dourado e fofo onde nasci e cresci, e que me inculcou a certeza de que, apesar de ser mais pequena, aparentemente mais frágil, de não conseguir abrir a maior parte dos frascos de grão, compotas e tomate pelado, e de ter um peito proeminente e empinado, que me dá mais chatices do que me ajuda, eu não sou costela de ninguém: sou qualquer coisa maior.
Sou o complexo cromossoma xis, com todas as suas coisas mágicas, inexplicáveis, sinuosas e também com incongruências várias expostas sem pudores. A minha capacidade mais extraordinária foi ter sido a primeira residência dos meus filhos: tive quatro (na verdade, cinco, mas isso fica para outra crónica, sobre a perda gestacional) corações a bater em uníssono com o meu e, portanto, tenho plena consciência daquilo que sempre fui, e daquilo em que me transformei, tenho perfeita noção do meu poder, do lugar que tenho no (centro) do mundo porque sou mãe.
Conheço bem as raízes do cinismo da minha mãe para com os homens. Sou a filha do meu pai — quer ela queira, quer não, quer o seu exemplo tenha sido, digamos, para ser simpáticos, extravagante. Ser filha de um artista é uma cruz pesada e tenho em mim que arruína automaticamente todas as possibilidades de a descendência poder seguir os passos. Sei do que falo. Mas não consigo sequer supor o fado de ser a mulher de um pintor, sem pertencer nem querer ter nada a ver com o clã das artes e dos intelectuais, e de levar assim a empreitada de construir uma família pelo caminho errático da genialidade, egoísmo, leveza e desprendimento do ser, tendo como única companhia uma solidão imensa.
A situação era insustentável e, por isso, fui, desde a minha primeira infância, filha de pais separados. Isso fez de mim um híbrido entre a aberração de circo e a obra de caridade. Vivi grande parte da minha infância numa redoma de protecção, com muito açúcar e com todas as vontadinhas satisfeitas, num piscar de olhos muito pestanudos, a lembrar uma conhecida gazela órfã dos desenhos animados.
Depois, lá para a adolescência, os pais dos meus amigos também se começaram a divorciar e, de repente, sem ninguém dar por conta (as grandes revoluções fazem-se sempre assim — seguem a ordem natural das coisas e por isso não precisam de fazer grandes alaridos espalhafatosos), toda uma sociedade portuguesa preconceituosa, que até então preferia um embuste de aparências, se vergou, sensatamente, à possibilidade de uma família ter legitimamente, e sem enxovalhos na praça pública, uma segunda hipótese para a felicidade.
Assim brotaram árvores genealógicas complexas, cheias de ramos aparentemente afastados mas entrelaçados entre si: os meus, os teus, os nossos.
Essa sempre foi a minha realidade: cresci no seio de uma família numerosa dos tempos modernos, e tenho até a sorte e a riqueza de ter os irmãos dos meus irmãos como meus irmãos, e de multiplicar, assim, o número de sobrinhos maravilhosos a quem gosto de amparar todos os golpes, e de deseducar como só os tios e os avós o sabem fazer.
Mas, de volta aos homens.
Sou a única mulher da minha geração na família, e a convivência forçada com irmãos, primos, e a maralha de homens que fazia da minha casa o seu covil (a minha mãe era a única que trabalhava fora de casa e, portanto, a nossa casa era o local de eleição de vários rapazes adolescentes das Avenidas Novas) fez-me absorver o melhor que há no sexo masculino (e, como dano colateral, todos os dicionários informais de calão e malandragem de que há memória).
Depois, bem cedo, pelos meus 18 anos, entrei, com direito a passadeira vermelha, no mercado de trabalho, e uma vez mais foram os colegas e os chefes homens aqueles que mais me protegeram e ensinaram (a única vez em que me senti violentamente assediada no trabalho foi por uma mulher), na sua infinita paciência para lidar com flutuações de humor, dramas existenciais, excessos de confiança e inseguranças infundadas.
Naturalmente, fiz dos homens os meus melhores amigos: leais, descomplicados, disponíveis, camaradas das maiores aventuras, sem medo ou vergonha de rir muito alto. Tive muita sorte com os homens. Ganhei fama de galdéria, mas nunca me importei muito — tal como um homem faria. E depois, a páginas tantas, tive, tal e qual como a minha mãe, os meus desaires e desilusões, que quase me fizeram ceder ao preconceito de que os homens não valem nada e que o mundo é das mulheres.
Comecei a gigantesca empreitada de construir a minha família com metade dos alicerces. Enchi o peito de ar, para ganhar embalagem para tudo o que era já impossível travar, com a vinda do primeiro filho, e julguei ser possível que a minha primeira filha fosse só filha da mãe.
Tal como no imbecil cartaz do Bloco de Esquerda, também a minha primeira filha tem dois pais. Arriscar-me-ia a dizer que até tem três, contando com um amigo que trago para a vida, que a ama como a filha que não teve, e que esteve sempre ao nosso lado nas maiores tormentas, e também nos momentos em que fomos mais felizes do que algum dia pudemos supor.
Isto para dizer que a nossa família numerosa não cabe em quaisquer estereótipos redutores: sou filha de um pintor e de uma mulher inteligentíssima e maravilhosamente teimosa que é desde há muito tempo “doméstica”. Sou neta de cientistas e de aventureiros empreendedores. Sou o produto de gerações e gerações de escolhas e destinos improváveis que itineraram por todo o país e, pelo menos, por três continentes. Não vou à missa (Deus está em toda a parte), tenho quatro filhos mas a primeira é de outro pai, trabalho fora de casa horas demais, não deixo mais ninguém conduzir o carro cá em casa, e é o meu marido quem muda mais fraldas e dá mais apoio em casa com os miúdos.
A nossa família é enorme. E é enorme por escolha e por destino, já que decidimos aplicar a difícil tarefa de amar o próximo: ela é o produto da minha família, com a do meu marido, e a família alargada dos nossos amigos, a família que escolhemos (cheia de falhas, como a família de sangue).
Esta foi a nossa escolha. Somos felizes assim, que ninguém ouse questionar, ou dar palpites sobre a maneira como conduzimos o seu destino da melhor maneira que sabemos e podemos.
Criamos quatro seres maravilhosos fora dos cânones, sob alguns olhares suspeitos, é verdade. Mas a maioria das pessoas mete invariavelmente conversa connosco torce com todas as suas forças para que esta nossa jornada seja a de uma vida, para que tudo nos corra como desejamos, mesmo que não compreendam, ou concordem integralmente com algumas das nossas escolhas e opções. Porque lhes basta a única certeza, aquela que está à vista de todos: que amamos estas crianças até ao fim do mundo, independentemente de sermos pai, mãe, padrasto, ou pa(i)drinho, e que por elas travamos qualquer batalha, damos sem pestanejar a nossa vida por qualquer um deles.
É isto mesmo que desejamos aos filhos de duas mães e aos filhos de dois pais. E é isto mesmo que sabemos que eles querem para os seus filhos.
Seguramente, em breve, para os meus filhos, esta não será uma questão. Os mais velhos já sabem que são livres para se apaixonar por quem entenderem; eles também já sabem que podem até casar com quem quiserem, se for esse o seu desejo.
E não precisam que o brinquedo do Happy Meal seja igual para meninos e para meninas para perceberem o que está em causa (o Bloco de Esquerda infelizmente não percebeu, ao politizar esta questão, misturando-a de forma abjecta com a religião): esta é a ordem natural das coisas. E não há nada a fazer se não aceitar, respeitar, e ajudar a vencer preconceitos.
E, desculpa, minha mãe, mas não tens razão: o pai pode ter tanto para dar como a mãe a um filho. E eu (e tu também) vemo-lo todos os dias cá em casa. E esta também é outra verdade que ainda custa a engolir, mas que, em breve, ninguém conceberá de outra forma.
Uma última palavra a uma família que está a viver os dias mais difíceis de todos, para os quais não há palavras de conforto possíveis (porque não foram ainda inventadas). Na passada semana morreu um homem bom, cujo único erro foi estar no local errado à hora errada. Era um dia de festa, era para lá que se encaminhava toda a família. Uma bala perdida, de entre muitas disparadas numa movimentada autoestrada, ceifou a vida de um pai e de um marido, que apesar de cobarde e brutalmente ferido, conseguiu, no limite das suas forças (de super-herói), conduzir o seu carro até a uma portagem, para proteger a sua família de uma horda de criminosos. As nossas preces estão com esta família. O seu exemplo de coragem e de amor não será esquecido.