Somos o que comemos, já nos dizia Hipócrates. Mas a verdade é que ainda não conseguimos realmente assimilar esta ideia, mais de dois mil anos depois. Pelo menos, não no sentido transformador que a verdadeira compreensão implica. Sabemos muitas vezes o que nos faz mal mas, ainda assim, comemos. O prazer sobrepõe-se ao dever que, como seres inteligentes, deveríamos assumir na manutenção da nossa saúde. É o emocional a vencer o racional, uma e outra vez. Além disso, a indústria alimentar especializou-se em seduzir-nos com sabores irresistíveis, viciantes até. Escrevi sobre o assunto nesta coluna, em outubro: Porque gostamos tanto de comer o que nos faz mal?
São muitas as doenças que causamos a nós próprios devido ao que escolhemos pôr no prato mas detenhamo-nos apenas no cancro. A Organização Mundial de Saúde estima que uma em cada três pessoas virá a ter um cancro até ao final da sua vida – e uma em cada quatro não sobreviverá. Em Portugal, é já a doença mais mortífera, tendo ultrapassado a taxa de mortalidade dos problemas cardiovasculares, que lideraram as tabelas destas estatísticas durante décadas.
Sabia que apenas 5 a 10% dos cancros têm origem genética? Uma outra pequena parte justifica-se pela exposição a condições ambientais nocivas mas a grande causa da multiplicação da doença nas sociedades modernas deve-se exclusivamente aos nossos comportamentos, como o consumo de álcool ou de tabaco – e 30 a 40% destes cancros têm origem na falta de exercício físico e no que comemos.
O que deveríamos comer? O departamento de Nutrição da Universidade de Harvard definiu o prato ideal: estará pelo menos cheio até metade com vegetais e frutos, um quarto com cereais integrais e não refinados e o outro poderá ter ocasionalmente proteínas saudáveis, como o peixe ou as aves e as leguminosas, fugindo das carnes vermelhas e processadas. Nas bebidas, glorifica-se a água e limita-se o consumo de sumos de fruta e de lacticínios a uma dose diária.
Depois há informações que nos baralham: nesta roda de alimentos o peixe surge como saudável mas notícias recentes indicam que o salmão é cancerígeno. E há muito que se fala nos peixes que têm mercúrio. No que ficamos? É aí que a informação mais concreta tem de impor-se. O salmão selvagem é saudável mas a grande maioria do que consumimos é de aquacultura, que tem altas concentrações de dioxinas, prejudiciais à saúde. E muitas vezes comemo-lo fumado (outro fator cancerígeno). Os peixes podem ter mercúrio, sim, e esses metais pesados acumulam-se no nosso organismo ao longo dos anos. A solução é evitar peixes de grande porte e de águas profundas, como o atum, o espadarte ou o peixe espada.
Há um “alimento” que não está presente nesta roda e que foi eleito, há muito, o inimigo nº 1 nas nossas ementas, apesar de estar presente em quase tudo o que comemos (muitas vezes de forma mascarada): o açúcar. Já em 1931 o biólogo alemão Otto Warburg recebeu o prémio Nobel da Medicina por descobrir que o metabolismo dos tumores malignos estava dependente da glucose. A célula cancerígena obtém energia através da fermentação do açúcar sem recorrer ao oxigénio, ao contrário da célula saudável que obtém energia através da oxidação. Este processo está até na base de um do exames imagiológicos mais precisos, o PET, que, por contraste, busca possíveis metástases detetando as células «gulosas», que consomem mais rapidamente a glicose injetada. Como em tudo, é a quantidade exagerada que é motivo de alarme. As crianças portuguesas são as que mais açúcar ingerem na Europa: as calorias provenientes deste “alimento vazio” deveriam ficar abaixo dos 5% e ultrapassam os 25%, muito por culpa dos doces e refrigerantes mas também através do consumo de alimentos aparentemente saudáveis, como os cereais de pequeno-almoço.
A promoção do papel da alimentação na prevenção do cancro tornou-se na missão de vida de Gabriel Mateus depois de, há quatro anos, a sua filha Safira ter sido diagnosticada com um cancro renal. Acompanhei o caso desde a primeira hora e a Safira acabaria por surgir na capa da Visão, numa grande reportagem Sic-Visão e, mais tarde, ver a sua história publicada em livro, devido à oposição dos pais ao tipo de tratamento que o Instituto Português de Oncologia de Lisboa preconizava.
![safira](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/10/8197925safira.jpeg)
A luta pelo direito de escolha e pelo acesso a mais e melhor informação médica foi a primeira motivação da família para criar uma associação, que recebeu o nome Projeto Safira. Mas a importância da alimentação na prevenção da doença tem sido a face mais visível do seu trabalho, com os cursos que Gabriel Mateus desenvolveu sistematicamente esgotados. “Fazer da cozinha uma farmácia”, assim se designa a formação, explica de forma acessível o que devemos comer – e depois ensina a combinar esses “alicamentos” de forma a criar refeições de deixar qualquer um com água na boca.
Buscando aprender mais, Gabriel Mateus fez um curso de Nutrição e Dietética no Instituto Profissional de Estudos da Saúde, fez uma Pós-Graduação e está agora a terminar o mestrado em Nutrição Clínica no Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz. Se puder, dedique uns minutos a responder a este questionário. O estudo visa não só aferir o nível de informação da população como estimular medidas de prevenção por parte das Instituições e responsáveis no âmbito da saúde pública.
A alimentação da Safira já era cuidada antes da doença. Mas a ementa do seu dia-a-dia passou a ter ainda mais importância na fase de recuperação, com o pai a dedicar horas a fio à confeção de tudo o que ela come. Aos 6 anos, já não estranhava os sumos de legumes, as sopas de cereais, algas e leguminosas, ou os bolos sem farinhas refinadas ou açúcar, adoçados apenas com fruta ou stevia. Hoje, aos 10 anos, Safira está bem de saúde e já é também uma maestrina à roda dos tachos. É na cozinha, ao lado do pai, de avental colorido e mangas arregaçadas, que vai aprendendo a dominar essa alquimia de ciência e amor que mantém a doença à distância.
Que o seu exemplo continue a encorajar-nos a fazer as mudanças que se impõem. A bem da nossa saúde.