Há um mal que grassa por aí, do qual descobri recentemente que padeço. O nome científico é “capacidade extraordinária de adaptação sonsa e ocasionalmente contrariada ou mesmo interesseira do discurso ao interlocutor”. E em que consiste esta condição? Ora, prefiro começar por explicar como dei por ela: corria o ano da graça de 2017, mais propriamente a semana passada, quando eu, não propriamente versada (nem particularmente interessada) nas lides domésticas, dei comigo a comentar com a senhora que me limpa a casa, respondendo a um comentário dela de que estava sol e um pouco de vento, “Que maravilha, assim os lençóis vão secar mais depressa!”
Imediatamente após proferir esta frase, tive uma espécie de experiência extrassensorial e vi-me fora do meu corpo. Porque, efetivamente, não me reconheço em semelhante frase. Quero cá saber da porcaria dos lençóis! Ainda hoje, desconfio que estivesse sob o efeito de ovos estragados. E assim me fui apercebendo de que esta maleita nos aflige nas mais variadas situações da vida. Quantas vezes não damos por nós a discutir as taxas das operações principais de refinanciamento de prazo alargado do Banco Central Europeu com aquele jeitoso só porque o vimos de Financial Times debaixo do braço? Ou a problemática vergonhosa da Uber com um taxista, cujo veículo só apanhámos porque a aplicação da Uber nos disse que não havia motoristas disponíveis na nossa área?
Sublinho o caso de uma amiga, supertímida, que quando se junta com outra mais, chamemos-lhe, sabida, parece que baixa nela o espírito de S. Vernáculo e daquela boca impoluta começam a sair barbaridades de fazer corar o mais experiente funcionário de construção civil afeto a andaimes.
Eu gostaria de acreditar que estabeleço o meu limite no setor terciário. Não aguento quadrilhice de estética e cabeleireiro, de bom grado leio revistas cor-de-rosa de 2012 só para não ouvir falar da não-sei-quantas que tem dinheiro para ter o filho no colégio privado mas anda com aquelas raízes numa vergonha. Nestes casos vêm ao de cima sintomas mais agudos de uma outra condição de que padeço, a designada “capacidade extraordinária de abstração ante fortes indícios de coscuvilhice por pessoas que mal vires as costas vão fazer o mesmo contigo”.
Pergunto eu agora: quem nunca desatou a falar de burpees, WODs e overhead presses no ginásio embora não fizesse a menor ideia do que se tratava, apenas para parecer mais fit-coiso aos olhos dos PT e restantes frequentadores? Ou, quando a amiga maluca das dietas vai lá a casa, apresentou o melhor repasto sem glúten-nem-hidratos-muito-menos-lactose-carregado-de-proteínas-do-bem-e-biovivos, mas não sem antes ter enfardado um pacote inteiro de Maltesers e escondido as gomas?
E o que se conclui de tudo isto? Primeiro, que esta crónica está cheia de pontos de interrogação. Encaremo-los como um convite à reflexão aprofundada. Segundo, que somos uma cambada de sonsos dissimulados, mas apenas para não ofendermos os demais. Ou seja, no fundo somos mesmo fofinhos.
Sendo assim, adaptemos discursos sem pudor, que é tudo por uma boa causa. Ou, se quisermos ser eruditos, procedamos ao mutatis mutandis à bruta.
Já vos disse que estais bem janotas hoje, caros leitores?