Na sequência da vitória do Benfica no domingo, e da festa ensurdecedora que daí resultou, ocorreram-me várias imagens.
Logo para começar, o barulho. Não consigo entender por que razão as pessoas exprimem a sua emoção através de barulho, ou seja, usando algo exterior, quando o sentir pertence, de forma inequívoca, ao domínio do interior. Penso, aliás, que uma pessoa verdadeiramente emocionada não consegue mexer-se nem balbuciar uma única palavra. Por isso, sempre achei estranho o comportamento dos foliões no Carnaval, sempre cheios de apitos e batuques. Da mesma forma, não consigo entender que, numa rua pacata e com pouca gente, ao domingo, uma criatura se ponha a buzinar feito louca. Pode perguntar-se: qual a razão de a manifestação da alegria exigir a atenção dos outros?
Segunda imagem: a transgressão. É proibido apitar, é proibido deixar carros mal estacionados. Sempre? Sempre não, quando há futebol tudo pode acontecer. Tenho amigos que moram em Benfica e que mudam a sua vida nos dias de futebol, porque os carros chegam a tapar os outros carros ou as saídas das garagens. Pode perguntar-se: qual a razão de a lei, repetidamente, não se aplicar?
Terceira imagem que me ocorre: tudo isto se explica pela mistura da paixão pelo desporto com a paixão pelo seu clube. Mentira. No domingo, o Benfica ganhou a Liga Europeia de hóquei em patins. Alguém comemorou tal feito? Paixão pelo desporto? Algum adepto do clube A aplaude o clube B quando este joga muito bem? Pode, então, perguntar-se: qual a razão de tanta emotividade?
Quarta imagem, incluindo a pergunta: como é possível todos os canais televisivos de informação só falarem, durante dias seguidos, de futebol?
A resposta a estas e outras perguntas semelhantes encontra-se na Antropologia.
Há muitos anos, as comunidades viviam isoladas umas das outras e, cada uma delas, desenvolveu um projecto cultural próprio. Esses projectos tinham características constantes: um mito fundador, diversos heróis míticos, um conjunto generalizado de ritos organizados em torno de uma crença sacralizadora. E tinham uma função. Ou seja, havia um objectivo global, também constante, que explicava esse esforço cultural: criar um sentimento de pertença, de unidade no seio dessa comunidade. A identidade cultural surgiu para unir uma comunidade contra as outras, externas e potencialmente perigosas (o «estrangeiro»).
Ora, passados milhares de anos, o mundo abriu-se e deixámos de viver em pequenas tribos. As sociedades desenvolvidas passaram a ser laicas – ou seja, as religiões deixaram de mandar –, os direitos humanos passaram a proibir a maioria dos ritos (por exemplo, os severos ritos de iniciação dos jovens), os estrangeiros deixaram de ser atacados, a lei pressupõe o direito da individualidade (em detrimento da colectividade) e a ciência mostrou que os mitos fundadores e os seus heróis eram fábulas para crianças. Que restou então? O essencial: o objectivo da coisa, quer dizer, a necessidade ancestral de termos algo a que nos agarrar para nos convencermos de que somos mais do que os outros. Vários antropólogos (ex. D. Morris) mostraram como o nosso clube de futebol passou a ser o suporte ritual da nossa identidade colectiva, suporte esse que tem a vantagem da manada: todos juntos temos a força que nos falta individualmente. Não interessa se me sinto frustrado em relação à minha vida ou à minha profissão. Ou se tenho pouca auto-estima. No meio do colectivo, anulo a minha individualidade e partilho o sucesso global. «Somos os maiores», foi o que mais se ouviu. Quanto maior for a frustração da sociedade, mais intensa deverá ser a sua sublimação. Por todas estas razões, esse suporte identitário foi sacralizado. E os ritos e heróis do campo são os justos substitutos dos ritos e heróis míticos perdidos. É por isso que nem a polícia ousa actuar: imaginem a polícia a rebocar os carros estacionados nas imediações dos estádios. Havia logo uma revolução e caía o Governo. É também por isso que é preciso fazer muito barulho. Não é por emoção. É para dar nas vistas e mostrar que pertencemos à tribo vencedora, aos «maiores». E os cansativos comentadores desportivos são uma espécie de novos teólogos, intérpretes dos mistérios de uma fé absoluta, total. Que requer uma cobertura televisiva total.
Em duas palavras, o futebol é, hoje, o cerne do sagrado urbano. Imaginam uma procissão religiosa no Marquês de Pombal com tanta gente como no domingo?