Não existe uma História definida, escrita e compilada, das cantorias ao desafio nos Açores. Existe, sim, um conjunto de trajetórias históricas, delineadas por hipóteses que podem explicar como é que esta tradição se tornou naquilo que é hoje. Supõe-se que o improviso tenha chegado à ilha Terceira logo por altura da colonização. Os primeiros desbravadores, provenientes do continente português, eram, na sua maioria, elementos do povo. Como tal, trouxeram consigo até à ilha instrumentos musicais e tradições religiosas festivas das regiões continentais de onde saíram. Nas folgas do trabalho, organizavam pequenas festas, onde a música e a poesia se destacavam. Por um lado, cantava-se quadras populares de escárnio e maldizer, e, por outro, declamava-se poesia mais “séria”, sobretudo ligada à fé cristã, que alegravam a população e a distraíam do isolamento sentido por quem passou a viver rodeado de mar.
O primeiro cantador, entre muitos outros de que há registo nos Açores, Francisco José da Terra, conhecido pelo “Terra”, nasceu em 1822, na freguesia do Porto Judeu, na ilha Terceira. Terra improvisava nas pequenas festas populares da época, como em bailes, terços, desfolhadas e matanças, organizadas por aldeões. Era um homem do povo simples e era para esse mesmo povo que cantava. Se pensarmos neste facto a partir do contexto socioeconómico, justifica-se a escassez de registos da história da cantoria. A plateia desfrutava dela enquanto momento festivo, mas, possivelmente, não teria meios para deixar história escrita sobre o que ouviam. As quadras populares que vigoravam seguiam o esquema rimático A-B-C-B, em que se harmonizava apenas o segundo com o quarto verso. Em meados de 1901, o improvisador Manuel Borges Pêssego, conhecido por “O Bravo”, operou uma transformação formal nas quadras improvisadas, aperfeiçoando o esquema rimático para A-B-A-B, onde se harmoniza o primeiro com o terceiro versos, e o segundo com o quarto.
A cantoria com os contornos melódicos conhecidos hoje começou no final dos anos vinte, princípios dos anos trinta, quando um cantador da ilha de S. Miguel, José Raposo da Câmara, conhecido por “Barbeiro”, se deslocou à ilha Terceira para cantar de improviso com José de Sousa Brasil, imortalizado pela alcunha “Charrua”, um nome ainda hoje muito conhecido pelo seu repentismo, ou seja, pela qualidade de seus textos e inigualável coragem de responder o que quer que fosse a quem quer que fosse. Até então, as cantigas ao desafio, chamadas de “Chamarrita Velha”, eram tocadas e cantadas, na ilha Terceira, no tom de lá maior e com uma velocidade bastante acelerada. O “Barbeiro” trouxe consigo uma melodia diferente, em sol menor, tocada a um ritmo mais brando e mais melódico. Acabou por despertar no “Charrua” o interesse por mudar a melodia com que cantavam o improviso, e, ainda nessa altura, depois de algumas experiências, definiram o lá menor como esqueleto melódico para as cantigas, um meio-termo entre o lá maior e o sol menor. Em termos instrumentais, foi assim que a cantoria ganhou a forma pela qual é hoje conhecida – uma espécie de fado tipicamente tocado por instrumentos de corda, onde se constroem quadras literárias, rigorosas, espaçadas de aproximadamente trinta segundos. Muito diferente, portanto, das conhecidas desgarradas do Minho, onde também se improvisa, mas com um estilo de rima menos rigoroso e com uma melodia mais rápida e geralmente acompanhada de concertina.
Nos primórdios, a mulher não tinha voz ativa nas cantorias, que eram tradicionalmente cantadas por homens. Elas iam à festa, mas apenas como espetadoras. Os palcos eram dos homens. O preconceito que prevalecia, condicionando a mulher, impediu-a de desenvolver esta arte de improvisar a cantar, embora nas ilhas proliferassem talentos femininos. Face às circunstâncias, as cantadeiras frustradas limitavam-se a cantar em casa.
O cantador “Barbeiro”, um dia questionado sobre a ausência de mulheres a cantar na sua ilha, a de São Miguel, respondeu:
– “São Miguel também tem/Mulheres que sabem cantar/Mas elas só cantam bem/Junto à pedra do seu lar”.
A primeira improvisadora mulher de que há registo foi Maria Augusta Castro, nascida em 1877 na freguesia do Porto Judeu, curiosamente na mesma freguesia natal do primeiro cantador da ilha. Maria Augusta quebrou o ferrete e subiu aos palcos, abrindo, determinada, caminho para que outras mulheres cantadeiras também avançassem.
O número de mulheres com o “dom” do improviso, que se conheça, foi muito maior do que muitos pensam. A diferença está, sobretudo, na frequência de vezes com que cantaram e no contexto em que o fizeram. O nome feminino mais conhecido no mundo da cantoria foi o de Maria Angelina, mais conhecida por Turlu, nascida em 1907, na freguesia de São Mateus. Esse reconhecimento prende-se com a imensa qualidade do seu improviso, assim como por ter sido a mulher que, na época, mais vezes pisou palcos “oficiais” do improviso, não se ficando por pequenos festejos ou serões familiares.
É importante notar que todas as mulheres que se conhece associadas ao improviso são naturais da ilha Terceira, apesar da cantoria existir também em outras ilhas. Este facto poderá estar associado aos valores liberais, que sempre foram uma imagem de marca desta ilha. É dado histórico que, na Batalha da Praia, em 1829, os liberais venceram os absolutistas, impedindo que o absolutismo entrasse na ilha. Este espírito irreverente e liberal dos terceirenses pode justificar a ausência de preconceito no que respeita à presença de uma mulher em cima de um palco nos cantares ao desafio, atividade, por tradição, exclusiva dos homens.
A cantadeira açoriana mais popular dos nossos dias, Maria Clara, a segunda Turlu, como já a cognominaram, é natural do Raminho e começou a cantar em setembro de 2009, com 13 anos. E nunca mais parou. Hoje, licenciada em Psicologia Clínica, com mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde, a cantadeira percorre, ciclicamente, quase todas as festas populares açorianas e é ainda chamada a abrilhantar festividades nas comunidades açorianas emigradas dos Estados Unidos da América e do Canadá. Maria Clara conta-nos que “o bichinho da cantoria nasceu em mim por influência do meu avô paterno, Dimas da Costa, o único do meu ceio familiar mais próximo que apreciava esta arte. Foi pela mão dele que fui a primeira vez a uma cantoria. Lembro-me de estar sentada na plateia, nas festas de verão da minha freguesia – tinha eu 7 ou 8 anos de idade – e de momentos em que um dos cantadores dizia uma quadra ao outro e eu segredava ao meu avô: – “Olha, avô, ele agora vai dizer isto e depois aquilo”. O que acontecia é que, quando o cantador cantava os primeiros dois versos, pela lógica e pela rima, eu já sabia como a quadra iria terminar. Paralelamente, surgiam-me, face a certas cantigas, ideias próprias e eu pensava: “Se fosse eu que estivesse ali ao lado, responderia desta ou daquela maneira”.
Maria Clara, mais tarde, já adolescente, saía da Escola Secundária Tomás de Borba, à sexta-feira, ia a casa apanhar a mala, seguia para o aeroporto, voava para Boston com a mãe, onde atuava no sábado e, no domingo, regressava à ilha Terceira para estar presente nas aulas na segunda-feira de manhã. A terceirense do Raminho já fez desafios com mais de cinquenta cantadores diferentes e esta paixão ganha tudo, a Psicologia Clínica, o mestrado, o academismo. A felicidade está em cima de um qualquer palco, seja qual for a geografia.
A cantadeira, quando a abordei para escrever este texto, fazia as malas para deixar a Coimbra dos seus estudos e regressar definitivamente à ilha, trazendo uma nota de 19 valores na bagagem, obtida na sua tese de mestrado. Teve ainda, todavia, a meu pedido, tempo para improvisar e “amanhar” estas quadras que, gentilmente, nos deixa em jeito de despedida:
Agradeço ao senhor João
Pelo interesse vigoroso
Nesta nossa tradição
Improviso maravilhoso
Um bem-haja à Visão
Pelo jornalismo rigoroso
Espero que esta edição
Deixe o povo orgulhoso