Ela veio de uma família a quem chamavam “os loiros”, embora de loira não tivesse nada. Era morena e bem morena, enriquecendo-lhe os traços faciais uns lindos olhos azuis. Chamava-se Maria dos Anjos, mas chamávamo-la Ama. E Ama porque deu de mamar ao segundo filho da minha avó, o meu pai, por esta não ter leite suficiente para o amamentar. O meu avô correu toda a ilha de São Miguel a perguntar se havia alguma mãe a quem tivesse nascido um filho e foi dar com ela no Maranhão das Capelas, uma zona elevada da ilha, toda ela voltada para o mar do norte. Maria tinha acabado de ter um filho, José, irmão de outros sete, e aceitou amamentar o bebé João, que assim sendo acabou irmão de leite de José.
Esta mãe de leite do nosso pai – éramos seis filhos – acabou sendo a nossa segunda avó, neste caso, de leite. Amávamo-la incondicionalmente, como qualquer neto que se preze ama a sua avó. E a Ama, após viuvar, veio trabalhar para a nossa casa, uma casa grande, de três pisos e acrescentada por um extenso jardim, na Rua do Castilho, uma artéria central da cidade de Ponta Delgada.
A Ama cozinhava como até hoje nunca vi ninguém. Tinha um toque especial para os temperos que tornavam os seus cozinhados manjares apreciados por quem tinha a sorte de poder saborear tais iguarias, e eram muitos os comensais, pois os meus pais passavam a vida a convidar familiares, amigos e gente de fora que chegava à ilha. Púnhamo-nos, a catraiada, junto a ela, para assistirmos ao espetáculo que era vê-la fritar e pegar na comida da frigideira para a voltar, introduzindo as mãos diretamente no óleo quente. Estupefactos, víamo-la também abrir o forno de lenha e tirar as assadeiras com as mãos, já cheias de cicatrizes. “Assim é mais prático”, dizia.
O meu pai era caçador e trazia aos domingos peças variadas de caça: coelhos, pombos torcazes, patos bravos, galinholas, narcejas, codornizes, e ela emprestava-lhes na cozinha sabores únicos, só servidos mesmo em restaurantes famosos à mão de grandes chefes. Decorava as travessas como ninguém, com uma arte que, embora tivesse ali o seu papel, bem poderia ter sido aproveitada noutras áreas, pois dali sairia uma decoradora de alto nível. Quase todos os dias da semana, tínhamos convidados e havia uma mesa farta com os maravilhosos pratos da ama. E fossem franceses (o pai era cônsul da França), alemães, ingleses ou americanos, chegados em navios de guerra que vinham a Ponta Delgada abastecer (o porto de Ponta Delgada integrava os portos da OTAN – Organização do Tratado Atlântico Norte), lá estávamos os seis filhos sentados também à grande mesa dos pais e seus convidados a rirmos disfarçadamente uns para os outros, apenas com os olhos, pois naquela jovem idade não percebíamos patavina de outras línguas. Até falávamos mal o português.
– Pai, podemos comer na mesa da cozinha com a Ama? – pedíamos sempre a ver se nos safávamos do rigor do jantar.
– Nem pensar! Sabem que vos quero a todos à mesa com os convidados! – sempre a mesma resposta perentória.
E no fim do jantar – como me lembro! – a Ama era chamada pelo pai ao quarto de jantar para que todos conhecessem a nossa chef de cuisine, a mais que todos os chefes e a nossa avó de leite. E ela falava no seu português do Maranhão com uma forte pronúncia micaelense, semi-corada, mas depois soltando-se e atirando piadas numa voz rachada com uma graça que era só dela. Com os seus ademanes, surpreendentemente, fazia-se entender por todos numa linguagem gestual suis generis e todos riam, aceitando-a de imediato para amiga do peito, e despedindo-se sempre dela.
Um belo dia, os filhos da nossa Ama, emigrados em Fall River, no Estado de Massachussetts, na costa leste dos Estados Unidos da América, convenceram a mãe a ir visitá-los e, após muita insistência (porque a doce Ama era a mulher mais teimosa que alguma vez conheci), convenceram-na a partir.
– Ama, e o avião? Vais ter medo? – perguntámos-lhe.
– Olha, querido, não sei. Levo o terço na mão e irei rezando a Nossa Senhora! –respondeu, corajosa. E assim foi. Despedimo-nos da Ama no aeroporto e vimo-la desaparecer atrás da porta do grande Boing 707. Foi-se a Ama entre os reatores da bruta aeronave e promessas de rezas infindas até a viagem terminar.
Os filhos, Gilberto e António, bem quiseram que a mãe ficasse definitivamente com eles em terras do Tio Sam, mas não, a teimosa Ama quis regressar à Rua do Castilho, em Ponta Delgada, onde ansiosamente a esperávamos.
O dia da chegada de Maria dos Anjos foi como mais um dia de aniversário para toda a sua família do Maranhão e filho e netos de leite de Ponta Delgada.
– Ama, gostaste?
– Gostei, querido filho, de os ver bem na terra da fartura, com “frizas” cheias (congeladores), casas grandes e carros a luzir, lindos de morrer … e tudo pago!
– E não tiveste medo do avião? – voltámos.
– Cá nada! Eu, para mim, nunca cheguei a sair de São Miguel. Sentaram-me ao lado de uma janela e durante muito tempo ia vendo aquela estrada muito direita (referia-se à asa da aeronave), larga e comprida. Como é que dali a umas horas estava na América?! Louvado seja Deus, eu que estive sempre sentada à beira daquela grande estrada em São Miguel – respondeu, numa ingenuidade que às vezes destoava da sua esperteza brilhante.
A Ama partiu, há muitos anos, para além do Maranhão, de Massachusetts, do mundo, de nós. Deixou, todavia, o leite materno no sangue da família. Ela continua entre nós. É uma dos nossos. Gente como a Ama não morre. Está teimosamente viva no bater nostálgico dos nossos corações.