Quem é culpado “disto tudo”?
Chama-se underdog a uma das quatro consequências possíveis dos resultados das sondagens sobre o comportamento eleitoral. Trata-se de o eleitor decidir votar num partido ou candidato que considera apresentar valores (na sondagem) injustamente baixos (as outras são o bandwaggon – votar em quem vai à frente -, a abstenção por certeza de derrota e a abstenção por certeza de vitória). Por acaso, e de acordo com o que sabemos sobre o assunto, o underdog será um dos efeitos que tem menos defensores e menos exemplos corroborativos.
A palavra underdog deriva das lutas de cães e corresponde à ideia de a pessoa começar a torcer pelo cão que está a ser derrotado, ou seja, posicionado em baixo do outro. Mal comparando, alguns dos meus professores, sobretudo de Sociologia, ensinaram-me a pensar da mesma maneira. Explico-me: devemos reflectir de maneira subversiva, sem seguirmos o mainstream, interrogando-nos sobre as realidades estruturais profundas, e tantas vezes escamoteadas, que se escondem debaixo da aparente inquestionabilidade dos consensos interpretativos.
Vem isto a propósito do coro de revolta que se gerou neste país contra o António Costa. Não vou defendê-lo, conhecemo-nos (declaração de princípios) desde miúdos e sou amigo dele. Mas vou fazer perguntas e reflectir sobre o assunto. É que não gosto de atribuir culpas a quem quer que seja sem começar pelas minhas.
Toda esta zanga (sobretudo oriunda da “direita” ou dos “socialistas moderados”) deve-se a quê? À questão Seguro? Ou seja, à acusação de chutar o outro de forma traiçoeira? Não me parece; se assim fosse, já deveriam ter começado a gritaria há muitos meses. Ao facto de ter perdido e não ter pedido a demissão? Também não me parece, é assunto que só interessará aos adeptos do PS. Ou é ao facto de procurar uma aliança contranatura na perspectiva do eleitor PS? Também é assunto que só interessará aos adeptos do PS, não justifica o alarme da “direita”. É por procurar formar um governo com outros apoios parlamentares quando não foi o mais votado? Também não, na Europa “civilizada” faz-se isso todos os dias. Será então por esses apoios parlamentares serem do PCP e do BE? É óbvio que sim.
Perguntam-me se estou preocupado? Apavorado! Apenas acho que a culpa não é (só) dele. E acho que não têm razão os que vêm agora dizer que não é legítimo o PS entender-se com PCP e BE, e usam uma série de explicações “deslocadas”: porque os programas são inconciliáveis; porque se insultaram na campanha eleitoral; porque A. Costa nunca insinuou essa aliança; porque não é essa a vontade dos portugueses; etc.. Vivemos numa democracia parlamentar. E os deputados são os representantes do povo. Fazem leis e decidem a nossa vida como entendem. No dia seguinte às eleições, são eles que sabem o que o povo pensa, e não os opinion makers. Tal como o Presidente da República representa o povo. Acaso se vão agora apreciar as decisões deste em função do que se pensa ser a vontade do povo português? Não! É a ele que cabe essa interpretação. Como acontece com os deputados. Acaso alguém aprecia as leis da AR em função do que se pensa ser a vontade do povo português?
Como dizia, esta baralhação toda explica-se por se querer branquear a situação peculiar do PCP e do BE. E seguindo o meu raciocínio, presumo que esta “direita” e estes “socialistas moderados”, que se manifestam com tanta convicção, achem que não é legítimo A. Costa procurar o apoio de partidos que consideram marxistas e que, por isso (acho menores as questões do Euro, da NATO e da reestruturação da dívida), privilegiam uma “democracia popular” e não parlamentar, advogam uma economia estatizada e não de mercado, defendem a tomada do poder através de revoluções e não de eleições e entendem que é necessária uma ditadura do proletariado no processo socialista que conduz ao comunismo. Mas das duas uma: ou isto é verdade, ou não é verdade. Se não for, e se a República tiver dúvidas, pode exigir a esses partidos afirmações escritas em contrário e a devida inscrição nos respectivos estatutos (pode também obrigá-los a denunciar certos regimes ditatoriais e sanguinários de certos países com os quais são, por vezes, complacentes). Mas, se for verdade, a República deve então impedir esses partidos de se candidatarem às eleições. Aliás, não quero só falar da “esquerda”: por que razão se permite que se candidate à Assembleia da República um partido monárquico? Com o qual, aliás, PSD e CDS já se aliaram no passado? E se ele tiver 46% dos votos, o que é que acontece? Em suma, pergunto: há partidos cuja candidatura é apenas permitida por todos partirem do pressuposto de que esses partidos terão resultados baixos e, portanto, nunca governarão?
Assim, e para terminar, continuo perguntando aos que agora protestam e pertencem ao “arco” que sempre mandou neste país, incluindo o Presidente da República: se acham que PCP e BE não têm legitimidade para governar, por que os deixam concorrer às eleições? Não acham, caros revoltosos, que são também culpados por tudo isto? E o próprio PS não é principal culpado, se ratificar esta aventura? E, já agora, os 44% de eleitores abstencionistas de 2015 (onde – hélas – me incluo) não são, também eles, culpados?
O Tchekhov (1860-1904) tem uma frase apropriada: “Errar é humano: mais humano ainda é atribuir o erro aos outros”.
PS: É esta a última crónica que publico na coluna “Os trabalhos e os dias”, em parceria com o Paulo Chitas. Continuaremos a escrever, mas em colunas separadas. Foi mais de um ano de escrita alternada, extremamente estimulante. Obrigado, Paulo.