Há cerca de um mês, o meu filho mais novo mandou-me um texto com este mesmo título, já por si oriundo de uma ideia de Heidegger, constante numa conferência feita em 1955.
A ideia do controverso filósofo é esta: o ser humano distingue-se pela sua capacidade de pensar, de reflectir; no entanto, o avanço da técnica (na altura, só falou de técnica, mas hoje teria falado de tecnologia e TIC) permite-nos o acesso ao conhecimento de uma forma muito rápida e fácil, que é inimiga da reflexão. Usando uma alegoria que não é dele, diria que fazemos as viagens tão rápidas que chegamos ao destino sem disfrutar da beleza da paisagem e sem perceber se não poderiam ter existido outros destinos com mais potencialidades. Heidegger fala de uma hipótese de nos tornarmos escravos dos “objectos técnicos” e de perdermos, por ausência de reflexão, as nossas raízes interiores, a coerência do que somos. Propõe então que o uso desses objectos seja meramente prático, usando uma metodologia de opção pelo sim ou pelo não uso do objecto em função de uma reflexão permanente sobre a utilidade concreta desse uso para o ser que somos ou queremos ser. Chamou a esta atitude a “serenidade para com as coisas”.
O meu filho (Manuel Valente Rosa, tem 21 anos e um dia ouvir-se-á falar dele – sem gabarolice de pai) leva a discussão adiante, perguntando de que coisas estamos a falar. São só objectos? Ou podem ser pessoas? Ou até comportamentos? Quer dizer, somos só dependentes destes novos objectos ou somos também dependentes de pessoas e hábitos aos quais nos prendemos no passado? Ao ampliar o objecto da análise, reposicionou o âmago da questão, retirando a ameaça ao futuro – que era a tese heideggeriana, o mal vem do futuro – e colocando-a no passado. Deste modo, interrogou-se se (1) a nossa “escravidão” é recente ou milenar; se (2) esta se deve aos objectos novos ou aos hábitos antigos; se (3) só criamos dependências em relação a “gadgets” que se tornam inúteis ou também em relação a pessoas que nos estiveram próximas e hoje – mesmo que não o queiramos reconhecer – já não nos dizem nada. Com estas perguntas, conduz-nos a um rejuvenescimento mental que consiste em pensar que o perigo não está, afinal, no futuro, mas na “ditadura do passado” (este conceito é meu…). E afirma que o problema não está na “coisa”, mas na relação que estabelecemos com ela, muitas vezes de tipo “matrimonial” (conceito dele), ou seja, criada com base num contrato que desejamos inquebrável. E quase termina, escrevendo: “a serenidade para com as coisas é alcançada se rejeitarmos o absolutismo das nossas decisões passadas”.
Que tenho eu a acrescentar a tanta profundidade filosófica?
Primeiro. Estou de acordo com o alemão a respeito da importância da reflexão na essência humana. Aliás, sem ela este texto não seria possível. Mas não acho que a reflexão tenha vindo a diminuir com o evoluir dos tempos. E muito menos acho que a culpa (se tal acontecesse) pudesse ser do desenvolvimento técnico ou tecnológico. Penso que nunca se estudou, investigou, pensou ou reflectiu tanto como nos dias de hoje. Quero com isto dizer que nunca tantas pessoas o fizeram. E o desenvolvimento tecnológico e a Internet foram fundamentais para essa evolução.
Segundo. Se dependemos hoje da tecnologia é porque a tecnologia e a ciência substituíram (em grande parte) o papel da religião. Nós, humanos, estamos, infelizmente, habituados a procurar protecção em algo exterior a nós. Ou seja, dependentes sempre fomos. Dos deuses; dos senhores feudais e seus sucedâneos; das ordens dos ascendentes e dos exemplos dos antepassados; maridos dignos de uma opereta; do “sempre foi assim”. A dependência está mais no nosso modo habitual de ser do que – desculpa lá ó Heidegger – a reflexão.
Terceiro. Pergunto: como poderemos evitar tanta necessidade de protecção? É talvez interessante pensar nisso. De outra forma, não conseguiremos avançar e rejeitar “o absolutismo das nossas decisões passadas”. Precisamos de crescer, certo. Mas como? Cada um que procure a sua resposta.
Mudando de assunto: aqui há tempos, percebi que a cobardia é a combinação do medo e da preguiça, enquanto a coragem é a combinação do medo (não pode haver coragem sem medo) e do triunfo da vontade.