Vi no outro dia, na televisão, uma reportagem sobre o humor, que incluía um conjunto de entrevistas a alguns grandes humoristas cá do burgo. E fiquei com esta dúvida: será que existem regras estruturantes que podem definir o conceito de humor e identificar o grande humor?
Penso que o primeiro contacto que tive com o verdadeiro humor, neste caso britânico, foi quando vi a Mary Poppins. Retive sobretudo um curto diálogo do filme em que o limpa-chaminés diz: “conheci um homem, com uma perna de pau, de nome Smith.” Pergunta o miúdo: “como se chamava a outra perna?”
O meu segundo contacto relevante com o grande humor aconteceu com os Monty Python. Deles, vou aqui apenas recordar uma cena: no início do filme sobre o “Graal”, vêem-se cavaleiros ao longe na névoa e ouve-se o galope dos cavalos; assim que se aproximam, percebemos que vinham sem cavalos, a saltitar imitando o movimento sobre a sela e a bater com duas metades de coco nas mãos para imitar as patadas inexistentes.
O terceiro contacto que é imperioso referir dá-se com o Herman, o rosto do humor mais genial que Portugal alguma vez conheceu. É impossível recordar todos os grandes momentos de diversão que lhe devo, mas realço – nem sei bem porquê – um número em que fazia de cirurgião maluco, a tirar órgãos da barriga do doente e a atirá-los ao ar (aos quais chamava “excrecências lapidoláticas), enquanto cantava uma canção totalmente disparatada em espanhol: “hoje voy a passar por el camino berde”.
Pergunto: que há de comum nestes três grandes exemplos (mesmo que a memória me atraiçoe um pouco)? Qual é, para mim, a lógica interna que estrutura estes momentos de génio e que pode explicar a essência do grande humor?
Depois de alguma reflexão, cheguei a uma conclusão surpreendente: o que caracteriza o supremo do humor é o mesmo que caracteriza o supremo da arte.
Em primeiro lugar, o desenraizamento que nos projecta na irrealidade. Por outras palavras, a recusa de uma qualquer concretização. Como se de uma ficção se tratasse. Tem, por isso, uma dimensão abstracta, não redutível a um indivíduo, a uma situação, a um tempo ou a um espaço específicos. Como a grande arte, o grande humor deve ser universal e intemporal.
Em segundo lugar, também nos projecta, como a arte, num “mundo outro”, não compreensível através das regras do nosso mundo vivencial. Muitas vezes, dizemos que se trata de uma ficção “maluca” – o “maluco” é, por excelência, aquele que não vive em função das regras adoptadas pelos outros. É daqui que sai, na minha opinião, a ideia do absurdo, do “nonsense”, característica fundamental do grande humor (mesmo não britânico).
Para dar um exemplo, é por fugir a estas regras, e contrariar estas duas características fundamentais, que o humor que se faz em relação a uma pessoa em concreto (como acontece na piada política) não tem normalmente graça nenhuma.
O que provoca o riso profundo é, então, o contraste dilacerante entre o nosso pequeno e comprimido mundo real e a sua transfiguração num outro mundo, paralelo e semelhante, mas que nos surge estranho, por via de uma desmesura de irrealidade e de liberdade nas regras de funcionamento. Tal como se existisse uma possibilidade de vida alternativa numa outra dimensão totalmente livre, apenas limitada pela nossa imaginação.
Termino lamentando o facto de o humor não aparecer na lista das artes. Começaram por ser 6, depois veio o cinema – que tantas vezes não é uma arte mas um “voyeurismo” de vidas alheias que contraria as duas regras atrás enunciadas – e hoje já existe referência em relação a 11 ou 12 artes. Até a culinária já aparece mencionada. É altamente injusto.
Não quero terminar mesmo sem fazer uma referência ao Ricardo Araújo Pereira e, como exemplo, ao enorme humor desse seu “a minha vida dava um filme indiano”.