Vi, muito recentemente, o título de uma entrevista, dada pelo odiado Ministro das Finanças alemão a um jornal português, que dizia assim: “A supremacia alemã não existe”. Eu ri-me para dentro, pois tenho a certeza de que ele estava a mentir.
O nazismo desgraçou a imagem da Alemanha junto das pessoas e das sociedades. E o país mereceu esse prejuízo, face à desmesura da barbárie. E já foi uma réplica, o mesmo aconteceu (embora com outras proporções, evidentemente) na guerra de 14-18. Dizem alguns especialistas, aliás, que foi o isolamento e o castigo (mesmo financeiro) a que os alemães foram sujeitos que explicou a “vingança” nazi. Não sei. Não sou historiador. Nem quero ser. Mas penso que a vida continua e não podemos prejudicar o futuro por causa do passado. Por isso, não aceito as reacções cegas, como a do filósofo francês Jankélévitch (judeu imigrado), que decidiu cortar com tudo o que era alemão, desde a segunda guerra. Inclusivamente, e sendo professor de Filosofia na Sorbonne, recusava-se a sequer falar sobre os filósofos alemães.
Vou, mais uma vez, irritar os bem-pensantes (sobretudo num tempo em que fica bem desprezar os alemães e valorizar os gregos): é claro que há uma supremacia alemã. Mas não é uma supremacia localizada, do género serem sempre os que ganham os 100 metros barreiras. Não! É uma supremacia globalizante, de uma dimensão humana considerável, pois incide sobre as duas manifestações maiores do ser humano: a música e a filosofia. Poderão dizer: também nós temos a supremacia da navegação, os espanhóis a da conquista, e por aí fora. Mas é preciso relativizar as coisas. Nós fartámo-nos de andar de barco e descobrir terras, os espanhóis e os ingleses conquistaram meio mundo. Mas não é a mesma coisa.
O que teria sido da filosofia sem Kant, Hegel, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Popper? Ou seja, sem os alemães (e austríacos)? A filosofia, exceptuando uma Grécia muito antiga, foi um assunto alemão.
Quem inventou a música? Bach, Beethoven, Haydn, Mozart, Brahms, Schubert, Schumann, Mahler? Quem reinventou a música? Não foi a (segunda) “escola de Viena” (Schoenberg, Berg, Webern)? A música, até recentemente, foi um assunto alemão também.
Também fizeram muito mal? Claro. E nós, em África, com essa invenção terrível da escravatura baseada na cor da pele? E os espanhóis? Qual foi o legado de destruição que deixaram nos povos e culturas andinas? E a Inquisição? Não vale a pena armarmo-nos em santinhos. Mas, volto a dizer, é preciso relativizar as coisas. O nazismo e a segunda guerra mataram menos gente do que o Estaline e o Mao.
Há uma certa ideia de desmesura que associo aos alemães. Ela esteve patente na prática do “bem”, como esteve patente na prática do “mal”. Essa desmesura é evidente. Como foi possível a um país (falo de um país, porque os japoneses foram secundários e os italianos irrelevantes), em meados do século XX, derrotar quase a Europa toda, e esta com a ajuda dos americanos? E só não derrotaram porque enlouqueceram a meio do caminho, provocando (entre outras disfunções) êxodo de cientistas que, ironicamente, acabaram por inventar a bomba atómica (e os aliados tiveram algumas sortes, como, por exemplo, um homem chamado Turing, que a menoridade mental compatriota depois desgraçou).
A Humanidade estará sempre em dívida para com a cultura alemã. Apesar de tudo o que aconteceu. Felizmente, o espectro do nazismo já está em vias de desaparecer. Infelizmente, o do comunismo não. Mas Bach e Nietzsche não desaparecerão nunca. E apesar de este último odiar os alemães seus contemporâneos – precisamente por recusar o nascimento do movimento que culminou com o nazismo -, era alemão. E pensava como alemão. Pensava com a tal desmesura alemã.
Bach inventou a música. Nietzsche criou um mundo de uma dimensão que nenhum outro homem igualou; originou o existencialismo e a vitória da liberdade perante o determinismo. Popper e Einstein, cada um à sua maneira, reconstruíram a ciência.
Claro que foram os franceses das luzes que iniciaram a ciência moderna. E, depois, houve Darwin. Claro que foram os gregos antigos que nos abriram a porta do pensamento original (se a Biblioteca de Alexandria não tivesse ardido, teríamos a hipótese de saber o que eles aprenderam com os sumérios, os fenícios, os egípcios e outros). Claro que na pré-história já havia flautas e batuques. Mas não estamos a falar da mesma coisa.