Fui ver, no domingo dia 19, o concerto do C. Corea e do H. Hancock no EDP Cool Jazz em Oeiras. Noite boa, paisagem bonita, público calmo, tendo em conta a histeria habitual dos que fazem tudo para se evidenciar.
Os músicos chegaram bem-dispostos e fizeram logo questão de explicar que não faziam ideia do que iriam tocar. Por mais mentira que fosse, fiquei logo aterrado, deduzindo experimentalismos de todo o tipo.
E assim aconteceu. Durante os primeiros 45 minutos, estiveram a fazer digestão do jantar e a divertir-se. Perguntam-me o que estavam a tocar, ou seja, que temas? Não faço a mínima ideia. Eles também não. Sugerem-me do lado, com ironia: estarão ainda a afinar os pianos? O Hancock parecia-me mais composto, mas o Corea só se ria, pairando sobre as nuvens que, entretanto, chegavam. Estive para me ir embora.
A dada altura, não sei qual deles começou a atinar, mas senti que a música começava a existir. Talvez tenham reagido a um público que não estava lá muito contente – ovações pouco convictas -, exceptuando os que insistem em abanar a cabeça para mostrar que estão a compreender a profundidade da questão. Mas, algures, o Corea entrou na dança e o Hancock, depois de uma “Cantaloupe Island” pouco conseguida, lá tentou enveredar por caminhos de uma lentidão mais depurada (mais na linha das entradas da “Court and Spark” e da “Both sides now”, do álbum das “Joni letters”).
Foi então que o Corea decidiu espanholar, indo buscar a sua “Spain”, onde presta homenagem ao Concerto de Aranjuez, retomando álbuns dos Return to Forever (como o “No mystery”) e mais outras coisas que não identifiquei (julgo que parte das suas “Spanish fantasies”). Não interessa, foi muito bom.
O concerto (quase) terminou com um encore, no qual envolveram o público a produzir sons para acompanhar, ou a reproduzir os sons por eles tocados. Foi muito divertido e agradável. Mas a música já tinha terminado. E grande parte do público saiu com encores ainda a decorrer, o que é, no mínimo, estranho.
Mais do que tentar avaliar o concerto na minha cabeça, o que me impressionou foi a consciência da tão ténue fronteira que, pelo menos na música, existe entre o medíocre e o maravilhamento. Estávamos perante músicos de elevadíssimo calibre, num concerto de uma “disciplina”, o jazz, que tem tudo para fazer brilhar a unicidade de um concerto ao vivo e, no entanto, o perigo está sempre à espreita. E esse perigo é, na minha opinião, a adesão a uma filosofia da arte contemporânea baseada na inovação, que alguns músicos de jazz promoveram e acabaram por instalar. Quando se diz que “depois do Coltrane nada foi como dantes”, independentemente da opinião que podemos ter sobre a obra deste músico, estamos a valorizar a originalidade, e só ela. A música contemporânea tem, como a pintura do mesmo “tempo”, obras que apenas valem pela sua originalidade. O que é pouco. Foi com essa filosofia que nasceu o “free jazz” e é por essa razão que um maço de jornais embrulhado num cordel pode valer, como eu vi pessoalmente em N. Y., vários milhares de euros.
Lembrei-me da distinção que o Popper (que não foi músico, mas seguramente um dos maiores filósofos do século XX) fez entre a arte subjectiva e a arte objectiva, sendo a primeira aquela em que a obra é o resultado de emoções (do autor, presume-se) e a segunda aquela em que as emoções (do receptor, presume-se) são resultantes da obra. Por isso ele defendeu que uma obra de arte não deve só possuir originalidade, mas integridade também. É uma reflexão interessante que vale a pena considerar.
Voltando ao concerto: valeu a pena? Claro que sim. Um quarto de hora de sublime vale várias horas de indiferença.