Não há reportagem televisiva que não seja acompanhada por “estudos de caso”: a família X que tem um pai desempregado e uma mãe incapaz de trabalhar por ter qualquer coisa mais ou menos irrelevante: a criança Y que tem problemas de aprendizagem na escola e sofre hiperactividade; a aldeia Z que só tem três velhos e 12 cabras, mas ainda produz queijo; etc.. Muitas vezes, os transeuntes que passam na rua explicam, na Grécia ou cá no burgo, as realidades económicas mais complexas, desde o IVA da restauração até ao futuro do euro.
O estudo de caso é um método científico de análise da realidade. E é utilizado desde sempre. Nenhum cientista se pode, portanto, envergonhar de ir por esse caminho em detrimento de outros. Foi largamente utilizado na Antropologia, associado à técnica da “observação por participação”: os antropólogos viviam anos com as comunidades étnicas que pretendiam estudar, para melhor compreender os seus elementos culturais: mitos fundadores, ritos, etc..
O estudo de caso tem, no entanto, um enorme inconveniente: as interpretações que dele se podem retirar são localizadas. Só dizem respeito àquela situação e não podem ser generalizáveis para outros “casos”. Assim, se eu estudar uma família de Lisboa, não posso generalizar as conclusões para as famílias do país. Tal generalização só é possível se utilizar outras técnicas (mais recentes na História da Ciência), como as que utilizam amostras representativas da população. Nessas circunstâncias, já posso extrapolar para todo um país, por exemplo.
Quando se usa então o estudo de caso? Quando o objectivo não é generalizar para um conjunto mais vasto (falar-se-ia, então, de observação “extensiva”), mas compreender em profundidade certos mecanismos do funcionamento social, dando enorme relevo ao detalhe e ao “escondido”, ou seja, às regras e procedimentos internos que a comunidade tem tendência a guardar para si e não revelar ao exterior (fala-se, então, de observação “intensiva”). Por isso, o método exige, ao investigador, técnicas que envolvem um contacto longo com o objecto de estudo.
Resultado: estas reportagens, “de rua” – para indivíduos – ou “no lar” – para famílias – deviam ser evitadas. Então, por que continuam a ocupar, de forma enervante, o horário nobre das televisões? Penso que há duas razões.
A primeira é que as técnicas de observação que permitem a generalização (inquéritos que usam amostras representativas) são caras. Sai muito mais barato andar pela rua com uma câmara e um microfone. Há até o abuso daquelas “sondagens” – que os órgãos de Comunicação Social são obrigados a explicar que “não são verdadeiras sondagens” – que, em vez de terem custos, têm rendimento, por via das chamadas de valor acrescentado.
No entanto, esta não é a razão principal. A prova disso é o facto de estas reportagens serem por vezes utilizadas para ilustrar resultados de estudos de tipo científico, que usam dados estatísticos oficiais ou amostras representativas.
A segunda razão é simples: em vez de a Comunicação Social ajudar a população a compreender e assimilar números abstractos relativos à totalidade do objecto de estudo (país, por exemplo), continua a fomentar o contacto concreto e directo com esse objecto. Em parte, por achar que os telespectadores não conseguem entender a linguagem dos números e a facilidade com que eles podem traduzir as características de 10 milhões de pessoas. Em parte, por incapacidade em lidar com a abstracção necessária a essas extrapolações e por refúgio na comodidade falaciosa da pequena história coscuvilheira dos indivíduos e das famílias concretas.
Faz-me lembrar as experiências pedagógicas que ensinavam aos meninos que uma laranja mais duas laranjas são três laranjas, o que provocava o caos mental dos inocentes perante um limoeiro. Foi este tipo de perspectiva que conduziu a uma frase que recordo muitas vezes, proferida por pessoas responsáveis na área da Educação quando era preciso desvalorizar a utilização de estatísticas generalistas que não entendiam: “a escola deve ser entendida por dentro” (explico para quem não perceber: só as pessoas que estão dentro da escola é que a conseguem entender).
É de dar urros.