Saídos, em vídeo, quase todos os filmes candidatos aos principais óscares, já me foi possível vê-los, e apreciá-los, uma vez que deixei de ir às salas de cinema desde que se transformaram em áreas de restauração. De todos os candidatos a melhor filme, só não vi “Selma”, que nunca encontrei à venda – nem sei de que trata -, nem o “Sniper americano”, que nunca procurei sequer; e nunca compraria, face ao espírito militarista americano que abomino.
Para os 6 que vi, faria uma distinção em dois grupos: os “documentaristas” e os “ficcionais”. Há, depois, o “Whiplash”, que não é classificável, nem comentável, pelo menos por mim, perante a incompreensível confusão entre arte e técnica – e entre criação e interpretação -, entre disciplina/rigor e selvajaria e, acima de tudo, por reduzir o sublime da improvisação no jazz à mediocridade dos “solos” que tanto encantavam os adolescentes dos anos 70.
No primeiro grupo, incluiria “Boyhood” e os filmes sobre Hawking e Turing. No caso do primeiro, a escolha é óbvia. Mais do que tudo, trata-se de uma experiência inovadora que acompanha a vida de um conjunto de indivíduos ao longo dos anos, com actores fixos e um simulacro de ficção que não interessa para coisa alguma. Nos dois outros casos, a situação não é muito diferente, embora estejamos a falar de quase documentários sobre a vida de gente célebre. No caso de Hawking, acho irrelevante um filme sobre a relação entre a doença e a vida amorosa do maior cientista vivo – do homem que tenta encontrar a explicação para a origem do Universo -, apenas tendo como “must” a grande interpretação do actor que ganhou o óscar principal. Mas já lá irei aos actores. “O jogo da imitação” consegue ser menos prisioneiro do “voyeurismo” provinciano, e já nos projecta, com frequência, num patamar de humanidade (leia-se do Homem) e não de Humanidade (leia-se do homem). Assim, e independentemente dos actores, parece-me que este filme é muito superior aos outros do grupo.
Vem depois o segundo grupo, onde se vislumbra o brilho efémero da arte. Gostaria de explicar o que me leva a fazer este comentário.
O cinema é uma arte extra. Por isso se fala de 7ª arte. Foi criada depois de séculos de existência das artes de base. No entanto, usufrui de condições muito especiais, pois consegue, tecnicamente, agregar as artes anteriores, sobretudo a pintura (imagem), a música (som) e a literatura (textos), para não falar no teatro, claro. Mas essa amplidão tem um problema: o cinema ataca-nos, sem darmos por isso, em diversas formas sensoriais simultâneas. É muito invasivo. Logo, acabamos por, passado pouco tempo, estar a viver em pleno a vida dos personagens. E sofremos, e choramos, e ficamos felizes quando tudo acaba em bem. Ou seja, o cinema infantiliza-nos e anula aquela que é para mim (e para o Malraux, já agora, que foi quem inventou o conceito) a principal característica da arte: “a ruptura em relação ao real”. Dito de outro modo, a arte existe quando nos transporta para um mundo “outro”, não entendível segundo as regras, ou as vivências, do mundo “de aqui”. Há uma estrutura característica do mundo real, e há depois uma coisa outra, que nos conduz a um mundo mais além. E é essa irrealidade que produz as duas principais marcas da arte: a universalidade (não se associar a um espaço) e a intemporalidade (não se associar a um tempo). A arte torna-se então absoluta, não reductível a uma qualquer concretização. Uma verdadeira obra de arte, como a música de Bach, é apenas maravilhamento abstracto, não faz sentido que nos faça rir ou chorar, a não ser por nos lembrar que há homens que se elevaram acima dos outros homens, dos deuses e das misérias do quotidiano, para criar o que de mais belo o Homem alguma vez concebeu.
Neste sentido, e perante um “The Grand Budapest Hotel” lindíssimo mas talvez demasiado onírico, eu felicito a Academia, pelo menos desta vez, pela escolha do memorável “Birdman”.
Quanto aos actores, e porque a conversa já vai longa, diria apenas – como escrevi algures acerca da interpretação que a Meryl Streep fez da M. Thatcher – que se o melhor actor é o que imita melhor uma personalidade concreta (Thatcher ou Hawking), o melhor desempenho seria então, por definição, o da própria personalidade em causa. Por outras palavras, e na sequência do que já disse, o melhor actor, para mim, é o que melhor nos transmite a interrogação e a perturbação de um ser humano perante os estímulos emocionais que nos colocam perante a grandeza da dimensão humana, e não o que nos limita ainda mais na identificação com um ser concreto. A melhor actuação do mundo vê-se na expressão facial de um Laurence Olivier, que nunca se deve ter preocupado com imitações. Assim, e seguindo o estranho hábito de procurar os melhores actores nos melhores filmes, daria o óscar ao Michael Keaton. E talvez à Emma Stone, com os seus desmesurados olhos de, neste caso, desencanto com o mundo “de aqui”.