Agora que o futebol acabou – acho eu – e foram todos de férias grandes, como as crianças, talvez seja possível fazer alguns comentários “sobre esta matéria” sem receber ameaças de morte.
1. Marx, quando pensou na religião como ópio do povo, não conhecia o futebol.
2. Os economistas e os gestores deviam avaliar, de forma quantitativa, a perda de produtividade laboral devida ao futebol. Alguns especialistas dizem que os melhores automóveis são os fabricados à quarta-feira. Por os operários já não se distraírem com as peripécias do fim-de-semana anterior e ainda não discutirem o próximo. Mentira. Tem apenas a ver com as discussões sobre os jogos passados e futuros. Por isso, passaram a marcar os jogos europeus à quarta, porventura para diminuir a nossa competitividade face aos asiáticos.
3. Se a televisão deixasse de transmitir política, futebol ou novelas, deixava de existir.
4. No fim da guerra, o Churchill disse: “nunca tantos deveram tanto a tão poucos”. Acho que a frase se pode adaptar ao futebol: “nunca tantos dedicaram tanto tempo a tão pouco”.
5. Se os seres humanos tivessem dedicado à leitura e ao estudo, nos últimos 50 anos, o tempo de atenção que dedicaram ao futebol, o mundo seria completamente diferente, em riqueza e em dimensão humana.
6. “O rugby é um jogo de rufias jogado por gentlemen; o futebol é um jogo de gentlemen jogado por rufias”.
Podia continuar a enunciar frases desgarradas, inventadas por mim ou por outros. Mas o que sempre achei importante foi tentar compreender o fenómeno do futebol. Mais concretamente, como é que “tanto” é atribuído a “tão pouco”. Já dei voltas e voltas ao juízo e não consigo chegar lá. Por isso, desisti.
Resta-me, porém, explicar por que razão falo de “tão pouco”.
Nasci no meio do rugby. O meu pai foi um grande jogador de rugby, capitão da selecção portuguesa e assim. Muitos dos seus amigos, entre eles o meu padrinho, haviam sido também jogadores dessa estranha modalidade. O meu irmão ainda joga, apesar de já ter idade para ter juízo, o meu sobrinho já joga. Ou seja, o rugby acompanhou-me toda a vida. Parece um jogo violento. É seguramente um jogo duro. Mas tem características que eu gostava de enumerar para os que o conhecem menos. Assim, como resultado dos muitos jogos de rugby a que assisti, ou que vi na televisão, posso dizer que:
-
não me lembro de alguma vez ter visto pancadaria nas bancadas, ou cá fora;
-
só muito raramente vi um jogador ser expulso do jogo;
-
nunca, mas nunca, vi um jogador agredir o árbitro;
-
é impensável um jogador atirar-se para o chão a fingir que está magoado; mesmo magoado, levanta-se e continua a jogar – um dia vi o mítico arrière do País de Gales, John Williams, que por acaso era médico, fugir da enfermaria e voltar ao jogo de cabeça partida, entrapada, a sangrar, até o obrigarem a sair;
-
vi muitas vezes os jogadores e os adeptos da equipa vencida aplaudir de pé, e de forma sentida, a equipa vencedora.
De novo, poderia continuar a dar exemplos, mas o que me parece mais relevante anotar é a ideia de existir um “espírito” que emana do jogo e que todos respeitam. Algo que é grande, e superior à disputa concreta; mais importante do que a pequenez da adesão a uma facção e resistente à animalidade da manada.
É por estas razões que não faria qualquer sentido, no caso do rugby, aturar horas e horas de um posterior e entediante comentário. O que seria uma bênção para todos nós. Porque a essência de tudo esteve num momento de partilha de uma beleza absurda. E tudo o que se possa dizer depois é totalmente deslocado em relação às sensações que um adepto de rugby valoriza, e procura.
Um jogo de rugby é, pode ser, uma obra de arte. E como dizia o Vergílio Ferreira, “o que é difícil não é demonstrar que uma obra de arte é excepcional. O que é difícil é ela sê-lo”.