O caminho para o lugar 9 da fila R do setor 2 do piso 0 do Estádio da Luz foi feito com o mesmo pensamento de todos os jogos desta época: aquela noite de segunda-feira, 6 de maio, em que um jogo fácil contra o Estoril se transformou na entrada para o inferno. Os momentos decisivos daquele empate misturavam-se com a imagem de Jorge Jesus de joelhos, uma semana depois, num Estádio do Dragão a renascer das cinzas. E aquele número! O 92. O minuto, repetido duas vezes naquela semana de maio do ano passado, que ditou o fim de todos os sonhos de uma época.
Este domingo, era tudo isto que me passava pela cabeça, ao ritmo das voltas da águia Vitória em torno do relvado. A meu lado, lá estava o meu filho Afonso, inseparável parceiro de inúmeras vitórias, mas também de deceções, como aquela estreia no Dragão, inesquecível não tanto pela beleza da obra de Manuel Salgado, mas pela obra, em contra-ataque, de um tal de Kelvin. Por falar nisso, onde é que anda o Kelvin?
Também lá estava o amigo Rui, com quem partilhei a loucura de comprar uma cadeira com o meu nome no Estádio. Um luxo que devo a um sportinguista. Não qualquer um, mas o mais ilustre e saudoso de todos. O meu pai. Não há vez que entre naquele estádio que não me lembre que essa foi a última prenda que me deu…
Estavam lá, como sempre, os vizinhos de alegrias quinzenais. O educadíssimo senhor Lourenço da fila da frente, que agora vem sozinho, porque o filho Pedro anda a tentar a sorte por Angola. O velhote do lado, chato e de voz esganiçada, que faz questão de antecipar sempre o pior. É irritante, mas todos acabam por lhe perdoar a estratégia de baixar sempre as expectativas. As vitórias, assim, devem saber-lhe melhor…
Estávamos lá todos. Nós e mais sessenta e quatro mil. E os outros milhões que assistiam pela televisão a um jogo com o último classificado. Confiantes que faríamos a festa por volta das oito da noite. Fizemos! Mas não sem que antes o sofrimento nos apoquentasse e fosse em crescendo por quase uma hora, ao ritmo dos golos falhados e de ataques esbarrados contra o autocarro vindo de Olhão.
O Benfica jogava, e jogava. A bola rondava a área a velocidade estonteante. Alturas houve em que mais parecia um jogo de andebol. Porém, mesmo quando a muralha olhanense era furada, Gaitan, Lima, Rodrigo, Sálvio e companhia pareciam apostados em entrar com a bola na baliza. Tardava a estocada final. Nas bancadas sobravam os nervos. Começavam a faltar as unhas e os cigarros.
O intervalo pareceu uma eternidade. As conversas começavam a revelar, às claras, os medos de há um ano. O fantasma do Estoril pairava. Sálvio a sair de braço ao peito parecia sinal de mau agoiro. Ia fazer falta para a segunda parte e para o que ainda falta ganhar…
Com o recomeço do jogo, a coisa não desanuviou. Antes pelo contrário. Percebia-se a ansiedade da equipa em chegar ao golo. As bolas continuavam a esbarrar nos dez jogadores do Olhanense plantados dentro da área. Uma e outra vez. Até que, ao fim de quase uma hora de ataque contínuo, surgiu… um contra-ataque. E a explosão deu-se, ironicamente, da forma mais inesperada.
No momento em que Lima empurrou a bola para o fundo da baliza, o Estádio da Luz voltou a unir-se num abraço. As lágrimas escorreram pelos rostos de quem assistia, tal como encharcavam os olhos de Lima, talvez o jogador que mais merecia a glória marcar o golo do título. E tanto mereceu, que os deuses do futebol lhe concederam o privilégio de marcar, logo a seguir, o segundo. Outra vez em contra-ataque.
Foi nessa altura, faltando ainda meia hora por jogar, que os sessenta e quatro mil no Estádio e os milhões espalhados pelo mundo inteiro perceberam que não restavam, finalmente, mais dúvidas. O Benfica é outra vez campeão! Título conseguido com mérito total. Tal como teria sido o do ano passado, tivesse a equipa conseguido converter contra o Estoril pelo menos um… contra-ataque.
Desde o meu lugar 9 na fila R do setor 2 do piso 0 do Estádio da Luz as coisas voltaram, enfim, ao devido lugar. As lágrimas que limpei do rosto do Afonso eram agora bem mais brilhantes do que aquelas que enxuguei, há um ano, na bancada do Dragão. O orgulho em sermos benfiquistas era, porém, o mesmo de sempre. Sentíamos apenas a falta de um homem. Estavam lá todos os que mereciam estar: o enorme Enzo, os patrões Luisão e Garay, o incansável Máxi, o explosivo Rodrigo, o glorioso Lima, o mágico Gaitan, o eterno Cardozo, os azarados Sílvio e Sálvio, o imperturbável Oblak, os Andrés (o Almeida e o Gomes, do golo mágico ao FC Porto), o consócio Rúben Amorim, o suplente de luxo Jardel e até o saudoso Matic, representado pelo estonteante Markovic e o resto do esquadrão sérvio, composto por Fejsa, Sulejmani e Duricic. E todos os outros: Artur, Siqueira, Steven Vitória, Ivan Cavaleiro, Funes Mori, Paulo Lopes…
Faltava Jesus, o obreiro. Faltava o homem que muitos amam odiar. O treinador que tantos crucificaram e que, ao contrário do outro Jesus, não ressuscitou no Domingo de Páscoa. Pelo simples facto que nunca se deixou abater. Esteve sempre lá, como desde o primeiro dia. Com os pontapés na gramática e o temperamento indomável que tanto incomodam tanta gente. Mas sobretudo com uma capacidade ímpar de fazer do Benfica, ano após ano, uma máquina de jogar à bola. Que não ganha sempre, é verdade. Mas que joga um futebol entusiasmante, bonito, praticado de forma exímia por jogadores evoluídos técnica e taticamente. Uma equipa que enche estádios e que, este ano, foi capaz de renascer das cinzas e voltar ganhar.
Quando, na altura de levantar a taça, Luisão fez questão de chamar o treinador e o presidente Luís Filipe Vieira ao centro do relvado, estávamos finalmente todos. A festa podia começar e só haveria de acabar, noite dentro num Marquês a abarrotar de gente. Homens, mulheres e crianças que agora esperam ali poder voltar em breve. É que há mais três taças para ganhar. Nem que seja em contra-ataque!