Agora ando a fazer exercício e dieta, apetece-me ficar bonito. Três vezes por semana um amigo meu, chamado José Francisco, leva-me para junto ao rio, em Belém, onde procedo a manobras físicas complexas, tais como andar. Ando quilómetros e quilómetros, quer dizer, talvez seja exagero, ando até me doerem muito as pernas e é um pau, a barriga diminui a olhos vistos, não tarda nada eis um Apolo Musageta ou, no mínimo, a Madona da Caldeirinha. Pelo menos vejo os pescadores, às vezes converso com eles, faço perguntas, examino os peixes que continuam a agitar-se cá fora, interminavelmente. O meu favorito é um chinês, sempre a rir, nunca conheci ninguém tão contente, que nem isco usa, atira aquilo, faz um movimento em u, levanta aquilo e aparece um peixe na ponta do anzol, preso pela barriga, pela cauda, por uma guelra, pelo que calha, aos saltos, que ele poisa na pedra, ainda a rir mais para nós. A uns vinte metros o patrão, gordo, plácido, velho, sentado num banco, vai orientando o chinês em gestozinhos mansos, de longe em longe levanta-se para corrigir pormenores, muda o anzol, regressa ao banco numa lentidão tranquila, olha os barcos, a água, não deixando de espiar o chinês, desabotoa a camisa para coçar os pêlos do peito, escarafuncha a orelha com a unha do mindinho, avalia os resultados, limpa-os na calça, torna a avaliar os resultados, recomeça a limpeza, não sorri para nós ao contrário do chinês, cuja alegria, não entendo porquê, aumenta até ao êxtase, a felicidade do chinês torna-me invejoso, raios partam aquele júbilo e, no entanto, quando não encontro o chinês murcho um bocadinho, o chinês que dança neste pé, dança naquele, se volta para nós com os cromados todos ao léu, de cara dividida ao meio pelo tamanho da boca, ele e o patrão pobres, roupas muito velhas, sapatos de defunto que caminharam milhas, camisolas sobrepostas, desbotadas, no fio, um certo cheiro a pouca água, um certo cheiro a alho ou então é o Tejo com problemas de hálito, os cabelos deles mais poeira que cabelo, na relva atrás de nós um par de namorados em beijos sedentos, mastigando-se as línguas, beijos sedentos é horrível, em beijos tipo desentupidor de retretes, bocas que emitem um
– Plop
de borracha ao afastarem-se, penso que vêm os intestinos atrás do
– Plop
mas lá se aguentam, felizmente, imagino um desentupidor na minha boca e eu a sair todo de mim, estômago, pâncreas, ideias, a namorada senta-se na relva para atender o telefone e enquanto conversa introduz os dedos no nariz do homem, manobra que ambos acham excitantíssima e se calhar é, quando o fazia em pequeno levava uma palmada imediata no pulso, a minha mãe, decerto conhecedora daquela manobra afrodisíaca, tentava castrar-me
– Que porcaria
e por isso fiquei esta coisa mole, sem vivacidade nem encanto, um chocho desinteressante, um maçador, tenho o aperto de mão desprovido de energia, duas esponjazinhas de cuspo nos cantos dos lábios ao falar, a ponta da língua emergindo a cada duas palavras, a expressão parada, os olhos vazios
– Repare em mim, senhora
e a alegria do pescador chinês permanece, não fala, diz sílabas que não entendo, guturais, faz acenos estranhos, estica-se, dobra-se torce-se a explicar-me o mundo e o mundo que me explica não o conheço, vim aqui para fazer exercício não para entrar em universos diferentes
– Adeus chinês
e o chinês a aproximar-se de mim escorregando nos limos, mais pescadores a cinquenta metros, cem metros, todos tão pobres quanto este, pescam para comer que tudo tão caro e o dinheiro não chega, um peixinho cru no pão, isso vi, mais algum peixinho para a patroa que trabalha a dias e não a querem agora, para os filhos a arrumarem os automóveis nos parques, pedindo moedas, cigarros
– Um cigarrinho amigo
de vez em quando uns roubos por esticão a velhotas, de vez em quando um canivetezito num pescoço de turista
– Money money
uns tempitos na cadeia, uns tempitos cá fora, uma criança feita a uma agarrada que durante a gravidez continuava a injectar-se e temos de andar, Zé Francisco, tenho de perder a barriga, apetece-me ser elegante, bonito, Apolo Musageta ou Madona da Caldeirinha, tanto faz, mas bonito, andar até me doerem muito as pernas, não poder com as pernas, fale-me do seu pai, gosto de quando me fala do seu pai e do amor que lhe tinha, se sonhasse como o invejo, se soubesse da minha vida comigo, a sua mão no meu ombro
– António
a sua mão nas minhas costas
– Amigo
a profundeza da sua amizade e eu
– Obrigado
eu do coração do coração
– Obrigado
e o chinês continuando a rir-se, afectuoso, aos pulinhos, feliz sei lá com quê, feliz sei lá porquê, passa por nós um barco de oito remadores a treinarem, ouve-se o treinador, num barco ao lado, a dar ordens por um megafone
– O número três blá blá blá
– O número cinco blá blá
o rio cheio de peixes sujos quase à tona, um cargueiro a subir a barra, cheiros confusos na água, um senhor muito gordo a ler o jornal numa esplanada, os namorados, sem ventosas, estendidos lado a lado, não me dói nada agora, rio para o chinês, daqui a nada, sem que me aperceba, estamos a falar a mesma língua, vontade de contar-lhe que na segunda-feira fui ao dentista e, como sempre que me sento naquela cadeira, os meus pés não paravam, sou um peixe, vou morder o isco da broca, vou acabar no pão de um pescador que me come, acabar na goela do chinês
– Mastigue-me com cuidado, senhor
no dentista falei ao telefone com o senhor Bastos, guarda-redes do Benfica de quando eu era pequeno e fiquei feliz por conhecê-lo, tinha a fotografia da equipa inteira na parede do quarto, a alegria que me deu ele dizer que, do sítio onde morava, me via brincar com os meus irmãos no quintal dos meus pais, obrigado senhor Bastos, obrigado por me ter visto brincar, obrigado por se lembrar de mim, ganhei o dia, sabe, palavra de honra que ganhei o dia, explicar ao chinês
– Ganhei o dia, senhor chinês
e, palavra de honra, por momentos quase tive a certeza, qual por momentos quase tive a certeza, tive a certeza, por momentos tive a certeza, o que são as coisas, que o chinês ia largar a cana de pesca, e os peixes, e o rio, e abraçar-me.