Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, a Europa acordou para uma nova e muito esperada fase de construção e desenvolvimento em direção a uma maior prosperidade económica, com mais democracia e maior robustecimento do Estado de Direito.
Volvidos todos estes anos de construção europeia e, sobretudo, quando em Portugal se alcançou um sólido meio século sobre o 25 de Abril, falar de independência judicial pode soar a algo exótico ou fora de moda.
Desenganemo-nos.
A questão está na ordem do dia e já afeta de forma muito impactante diversos países da União Europeia.
Antes de mais, um pouco de contexto.
Ao nível da União Europeia, os diversos Estados-membros tendem a partilhar uma mesma matriz, designadamente a de corresponderem a democracias modernas que assentam em eleições livres e legitimadoras e, bem assim, a Estados de Direito onde vigora a separação de poderes e plena consagração da independência dos tribunais.
Todavia, a própria vigilância popular relativamente aos direitos fundamentais de uma comunidade tende a ser afetada pela erosão provocada pelo decurso do tempo, como que gerando um “adormecimento coletivo” muito facilitador do surgimento de discursos políticos mais disruptivos e populistas.
Ora, é neste âmbito que, a nível europeu, se assiste ao ressurgimento de forças que, após 89, não se queria acreditar que pudessem fazer caminho.
Na verdade, a história tem demonstrado uma manifesta vocação para ser replicada, mesmo nos contextos onde aparentemente o Estado de Direito parecia ser uma realidade consolidada e inabalável.
Ora, nos casos em que forças de cariz autoritário alcançam o poder, mesmo que de forma democrática, a verdade é que rapidamente tendem a instituir regimes de cariz iliberal, com imediato enfraquecimento de direitos e liberdades fundamentais.
E nessa senda autoritária, em regra, o primeiro raio de ação tende a visar a independência do poder judicial.
Porém, para aqueles a quem o tema pareça mais esotérico, o fundamental a reter é que a independência dos tribunais não é um privilégio ou um capricho dos agentes da justiça e dos juízes em particular.
É, na verdade, uma das principais conquistas civilizacionais e é o garante para qualquer cidadão de que pode fazer valer os seus direitos perante qualquer pessoa ou entidade sem interferências de outros poderes.
Dito de outro modo, ter juízes independentes, designadamente dos poderes políticos, é um direito de todos os cidadãos, não admirando por isso que sejam dos primeiros a ser alvo de ataque quando o autoritarismo pretende executar os seus planos de domínio
Dito de outro modo, ter juízes independentes, designadamente dos poderes políticos, é um direito de todos os cidadãos, não admirando por isso que sejam dos primeiros a ser alvo de ataque quando o autoritarismo pretende executar os seus planos de domínio.
E as formas de ataque ao judiciário são várias, iniciando-se em regra por alterações na composição dos tribunais superiores e constitucionais, seguidas de tentativas de controlo dos Conselhos Superiores da Magistratura, gizando novas e convenientes regras de nomeação e/ou recrutamento de juízes, o que tudo, e complementarmente, é acompanhado, não raro, do lançamento de processos disciplinares ou criminais infundados visando os magistrados, do estrangulamento das suas remunerações e, por vezes, de campanhas públicas visando a imagem da justiça no seu todo, apregoando-se necessidade de reformas profundas, até às suas mais longínquas fundações.
De muito disto padeceu a Polónia até há bem pouco tempo e nisto vive hoje, de forma angustiante a Hungria, onde a degradação do judiciário atinge proporções preocupantes.
Com efeito, assiste-se naquele país a uma pressão muito forte sobre os juízes, visando, desde logo, a sua componente remuneratória, a qual não tem sofrido qualquer atualização, contrariamente a todos os demais servidores e representantes do Estado.
Esta circunstância mereceu já uma intervenção da Associação Europeia de Juízes, que considerou que a situação em causa tinha um efeito adverso sobre a independência do poder judicial, conforme, de resto, tem vindo a ser frequentemente afirmado quer pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (designadamente no Acórdão de 27.02.2018, no Caso C64/16, Associação Sindical dos Juízes Portugueses), quer pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa [designadamente na Recomendação (2010)12], sendo ainda sublinhada ao nível dos Princípios Básicos da ONU sobre a Independência do Poder Judicial, da Magna Carta dos Juízes do Conselho Consultivo dos Juízes Europeus (CCJE, de resto, um organismo do Conselho da Europa).
O CCJE, na verdade, é particularmente assertivo na sua Opinião nº1, onde se pode ler que “é necessária uma remuneração judicial adequada para salvaguardar os juízes de pressões dirigidas às suas decisões e, de uma forma mais geral, ao seu comportamento, para assegurar que os melhores candidatos entram no poder judicial. A assistência de um ‘staff’ qualificado, e a colaboração de assistentes judiciais, que devem libertar os juízes de trabalho de rotina e preparar as decisões, pode, evidentemente, contribuir para um melhoramento da qualidade das decisões tomadas por um tribunal. Se tais recursos estão em falta, o funcionamento efetivo do sistema judicial para atingir um produto de alta qualidade será impossível.”
Porém, e apesar de todas estas aquisições que se tinham por seguras, o governo húngaro optou por uma estratégia alarmante.
Assim, no passado dia 20 de novembro de 2024, representantes, além do mais, do governo e dos órgãos de gestão de disciplina dos juízes reuniram-se na cidade de Gyula (uma localidade de difícil acesso para a maioria dos juízes), sem possibilidade de participação online e sem qualquer tipo de negociação com as associações representantes dos juízes (que não se confundem com os Conselhos Superiores).
Ali estipularam um acordo em que o governo encetaria reformas ao nível do sistema judicial e da carreira dos juízes, de conteúdo desconhecido, a troco de um aumento salarial, cujo valor não cobre sequer a inflação dos últimos anos.
Isto é, foi passado um cheque em branco.
Tendo tido conhecimento do sucedido e em face da degradação de princípios constitucionais basilares, vários juízes húngaros apresentaram a sua demissão, tendo sido remetidas milhares de cartas ao Conselho Superior manifestando oposição perante tal falta de transparência e salientando que uma reforma do sistema não pode ser feita nos bastidores, à margem de uma ampla consulta dos profissionais do foro.
Por estes motivos, no próximo dia 22 de fevereiro de 2025, em Budapeste, terá lugar uma manifestação sem precedentes de muitas centenas de juízes húngaros, com o apoio das diversas associações europeias, em defesa da independência judicial e dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Os potenciais participantes foram já avisados de que poderia ser elaborada uma “lista” com os seus nomes, cuja finalidade bem se pode adivinhar.
Contudo, para aqueles a quem uma manifestação de juízes cause estranheza, é preciso ter bem presente que, conforme tem afirmado o CCJE: “Nas situações em que a democracia, a separação de poderes ou o Estado de Direito estão ameaçados, os juízes devem ser resilientes e têm o dever de se manifestar em defesa da independência judicial, da ordem constitucional e do Estado de direito, tanto a nível nacional como internacional”.
É por isso que, no dia 22, os juízes húngaros se levantarão, ensinando a toda a Europa a importância de se estar atento aos sinais de perigo para a integridade o Estado de Direito.
Nós também não estamos imunes.
A nossa solidariedade com o povo húngaro é plena.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.