“Desde que cheguei a esta sala de audiência, sinto-me humilhada. Chamaram-me alcoólica, disseram que estou num estado de embriaguez tal que sou cúmplice do senhor Pélicot. Tenho a impressão de que sou a culpada e que atrás de mim os 50 são as vítimas”. Palavras de Gisèle Pélicot que mostram, mais uma vez, quão pernicioso é o sistema judicial quando de crimes de violência sexual se trata.
Vejamos alguns dos principais argumentos levados a tribunal pelos vários advogados de defesa, na tentativa de desculpabilizar os arguidos, acusados de violarem uma mulher em estado inconsciente, e de descredibilizarem esta vítima de violação, que foi basicamente sedada e ‘oferecida’ pelo próprio marido, a mais de 80 homens. O objetivo: ser violentada sexualmente, enquanto ele ora participava, ora gravava as agressões em fotografia e vídeo. Eis algumas das teorias da defesa: como ela praticava naturismo era, portanto, uma exibicionista. Tinha problemas com consumos de álcool e isso diz muito da sua índole. Na realidade, era tudo um jogo sexual, uma fantasia de casal libertino da qual ela estava a par. Ela fingia estar a dormir e foi cúmplice do marido. Como é que ela podia não saber se aparecia com os olhos semiabertos em alguns dos vídeos? Não havia necessidade de ter o consentimento dela uma vez que o marido era o intermediário. Uma violação não pode ser considerada violação se durar “apenas” uns minutos.
O rol de hediondas ‘desculpas’ não termina, espelhando tão bem a forma abjeta com que as vidas das vítimas de violência sexual são invariavelmente escrutinadas, assim como a desconfiança histórica que sobre as suas palavras recai. É o verdadeiro calvário de descrença pela via dos rótulos, da atribuição de culpa, de instigação da vergonha e da dúvida, da manipulação de factos, da indução à confusão mental, fomentando tudo isto uma total revitimização em tribunal de alguém que já passou por um trauma inimaginável. Tem sido, contudo, admirável assistir à onda de solidariedade e apoio público que esta mulher tem recebido. Mas ao mesmo tempo, quantas mulheres não recebem tal apoio? E se não existissem fotos e vídeos como prova, em quem a opinião pública confiaria numa primeira reação à denúncia? É preciso um crime sexual ter este tipo de contornos para que a palavra da vítima seja levada a sério?
Se não percebem quão potencialmente danosa é ainda a aplicação da lei, assim como o julgamento e a descrença primária da sociedade quando falamos de vítimas de agressões sexuais, então aconselho-vos a irem ver a peça “À Primeira Vista (Prima Facie)”, que depois do êxito que teve o início do verão, voltou agora aos palcos do Teatro Maria Matos, onde estará até final de novembro. Interpretação absolutamente brilhante de Margarida Vila-Nova do texto avassalador escrito por Suzie Miller, no papel de uma advogada de defesa que acaba na posição de vítima de violação.
Até mesmo Gisèle Pélicot está a ser questionada sobre a sua cota parte de culpa, ao ter sido violada por mais de 80 homens, quando estava sedada pelo próprio marido. Humilhada em tribunal, como se, na realidade, não fosse assim tão vítima das dezenas de crimes de violação de que foi alvo. Como imaginam que são recebidas as demais que apresentam uma denúncia destas?
Se não gritou, nem esperneou, não pode ter sido violada
Gritou? Esperneou? Disse que não com todas as letras? Ficou quieta porque, na realidade, até estava a gostar? Chorou? Sentia-se previamente atraída por ele? Disse que sim e depois arrependeu-se de o ter feito e inventou que foi violada? Por que andava sozinha àquela hora? Não terá havido um mal-entendido? Tinha alguma coisa contra o arguido que a levasse a acusá-lo para o prejudicar? Quer sacar-lhe dinheiro? Se no dia a seguir até foi trabalhar, é porque não pode ter sido uma violação. Se não há nódoas negras, é porque não houve resistência. Se não houve resistência, é porque foi consentido. Se foi o marido, não é violação. Se demorou vários meses até fazer queixa, estava com dúvidas? Tudo isto já foi ouvido por vítimas de violação, seja quando se dirigem a uma esquadra para apresentar queixa, seja em tribunal. Como se para se ser vítima de um crime sexual houvesse um guião a cumprir. Não há. Até mesmo o facto de nestes casos ter de ser a vítima a ter de provar que o crime aconteceu, e não o arguido a ter de provar que é inocente, mostra bem quão enviesado é todo este processo. Não me admira que tantas prefiram lidar com isto em silêncio. Demasiadas vezes, a justiça que as devias proteger, torna-se no carrasco que lhes dá a estocada final na sua dignidade. Não devia ser assim, não tem de ser assim.
Demasiadas vezes, a justiça que as devias proteger, torna-se no carrasco que lhes dá a estocada final na sua dignidade. Não devia ser assim, não tem de ser assim.
Importa percebermos que a violência sexual, seja ela na forma de assédio, seja na forma de violação, está sempre assente num jogo de poder do agressor sobre a vítima, exercido nas mais variadas formas (física, psicológica, etc). E que cada vez que a justiça não funciona, o que acontece é a manutenção nefasta desse mesmo exercício de poder. Cada vez que uma vítima é escrutinada, devassada, humilhada, descredibilizada e fica sem resposta por parte de quem a devia proteger, está a ser alvo de múltiplas formas de revitimização, sem se conseguir libertar de uma teia em que o agressor se mantém sempre na posição de poder. Poder esse que apenas se inverte se o agressor for efetivamente punido pelos seus atos: é necessário que seja feita justiça para que a vítima possa, finalmente, sentir que, de alguma forma, é ela que tem o poder da situação. É preciso que justiça seja feita para que as vítimas confiem que terão resposta e os agressores não tenham tantas certezas quanto à sua impunidade final.
Esperemos que Gisèle Pélicot venha, algum dia, a sentir que recuperou o seu poder.