Quando nos sentimos sob pressão, tendemos a reagir. Queremos soluções rápidas, queremos certezas e queremos, acima de tudo, conseguir alterar a nossa situação. É normal e desejável que assim seja, mas como tudo na vida, precisa de calma e de equilíbrio para não cair num extremo que não resolverá nada.
É muito curioso como o nosso cérebro reage em situação de stress – e todos reagimos de forma diferente – mas, o que nos últimos tempos me tem fascinado, é a forma como ele trata as nossas memórias. Já repararam que, quando nos lembramos das férias de verão, o que nos vem à lembrança é o sabor a sal, o cheiro a protetor solar e a sensação de areia nos pés? Tal como, quando pensamos no Natal, lembramos o chocolate quente, os filhós e o calor da lareira. Dificilmente nos lembramos das discussões familiares, daquele peixe-aranha que uma vez nos picou ou dos escaldões que, inevitavelmente, apanhámos em algum momento.
Há várias razões para isso acontecer, e se quiserem saber mais sobre o assunto por quem sabe realmente sobre ele, convido-vos a ler este texto – fazendo o aviso de que conheço muito bem a autora, uma vez que cresci com ela e que é responsável, também, por muitas das minhas boas memórias. As más, eventualmente, terei recalcado.
Estes dias estava a ler as notícias sobre as eleições no Reino Unido, que decorrem hoje, e sobre as eleições em França – cuja segunda volta se realiza no próximo domingo – e dei por mim a ler um texto que podia ser uma obra de ficção, não fosse ter a certeza absoluta de que a autora se recorda do que escreve precisamente como conta.
Num artigo publicado recentemente no The Guardian, a escritora Zadie Smith escreve que “costumava chocar as suas audiências norte-americanas com as suas histórias sobre os excelentes e acessíveis universidades e serviços de saúde britânicos. Depois, os Conservadores destruíram o país”.
A verdade é que os dados mais recentes mostram que o sistema educativo inglês continua a ser dos melhores do Velho Continente, e se é certo que o NHS apresenta graves problemas, a verdade é que nunca foi propriamente parecido com um serviço privado.
Quanto a outros números, como os do emprego, uma rápida passagem pelas estatísticas oficiais no país revela que em 1971 – a autora nasceu em 1975, portanto fomos buscar os dados mais antigos que existem em base de dados – a taxa de emprego era de 72,1%, o que compara com uma taxa de 74,3% registada em abril passado. No mesmo sentido, o desemprego mantém-se em redor dos 4%, tal como em 1971, enquanto a população registou um crescimento razoável de 55 para 67 milhões de pessoas. Se olharmos para o que aconteceu nos últimos 14 anos, desde que eles estão consecutivamente na liderança do Reino Unido, os dados também estão do lado dos Conservadores.
Claro que estamos a ignorar o falhanço monumental do Brexit, mas nem foi a esse episódio em específico que a autora se referia, pelo que eu também o ignorarei, até porque não é importante para isto que vos quero dizer hoje.
Há uns meses escrevi aqui sobre outros dados curiosos que a Economist tinha reunido no Reino Unido, que se prendiam com questões de integração de imigrantes, e de políticas que potenciam o melhor das pessoas, ao invés de simplesmente as acolher e deixá-las à sua sorte – pode recordar o texto aqui.
Não vou, sequer, ousar contrapor aquilo que Zadie Smith diz. Conheço relativamente bem o Reino Unido, mas não tenho a pretensão de avaliar a sua evolução como faz a autora do texto que, à medida que lia, me foi desenhando um sorriso no rosto. Não pelo que Zadie escreveu – não escrevo eu, amiúde, ferozes críticas os nossos governantes? –, mas porque revi na sua indignação e certeza algo que se tem repetido nos últimos tempos, tantas têm sido as eleições em redor do globo: a certeza absoluta de que antes é que era bom; a noção clara de quem são os maus e os bons de um filme que, se fosse tao fácil de compreender, era muito mais fácil de resolver; e a segura convicção de que vai todo mudar a partir de hoje, quando é mais do que expectável que os Trabalhistas voltem ao poder, ainda que com um candidato mediano e sem qualquer experiência política – mas é o rosto da esperança, e isso não é coisa pouca.
O que o nosso cérebro faz às nossas memórias ajuda bastante nesta leitura que tendemos a fazer – de vez em quando o meu pai também diz que “dantes é que era bom”, e é preciso a minha mãe dar-lhe uma palmadinha na mão e perguntar se realmente era bom não haver comida suficiente em casa, ou irem descalços para a escola. Funciona como uma espécie de despertador, e ele lá volta para 2024 e admite que não, que realmente se calhar não é bem assim.
As coisas não estão bem. Nem em Portugal, nem no Reino Unido, nem nos EUA, nem em França nem em qualquer outro país desenvolvido do qual nos sintamos perto. Por todo o lado têm crescido os extremismos, os discursos de ódio, o capitalismo desenfreado, a falta de cuidado com o outro, uma espécie de desnorte que vai das políticas para a sociedade – e lamento, mas não acho que só os governantes tenham parte nisto!, a nós também cabe uma parte relevante de ajudar a faze diferente, todos os dias.
É verdade que a vida está difícil para os mais novos (o que é incrível, porque basicamente oiço isto desde que entrei no mercado de trabalho, ainda corria a primeira década do ano 2000), que houve uma degradação acelerada dos serviços públicos, sobretudo nos países que apreciam o Estado Social e que é urgente fazer diferente. É urgente ver as pessoas mais engajados na política e na causa pública – a abstenção TEM de nos envergonhar – e é fundamental exigirmos mudanças a quem nos Governa, a quem nos lidera, a quem tem mais voz do que nós.
O que não podemos é cair no engano de que antes é que era bom. Porque antes, tanto em Portugal como no Reino Unidos – ou se quiserem, em França – havia imensas coisas muito más. Como a mortalidade infantil, a pobreza extrema ou a falta de níveis de escolaridade básicos da população. “Ah, mas não estamos a falar de tempos tão antes”, podem dizer-me. Então estamos a falar de que tempos? Quando é que antes foi melhor do que agora e em quê?
Quem me lê, sabe que uso recorrentemente generalizações. É impossível não o fazer. Mas nestes casos em concreto temos de ter muito cuidado com o que generalizamos e com o que pedimos. Porque tem sido à conta de muitos “antes é que era bom” que hoje enfrentamos partidos de direita radical a defender retrocessos civilizacionais. Antes é que era bom?
Tenho dúvidas. Mas sei que podemos e devemos fazer melhor. E é esse olhar no futuro, muito mais do que esta obsessão pelo passado, que temos de manter. Eu não quero voltar ao antes. E desconfio de que vós também não.
Dito isto, que este 4 de julho seja de mudança. Para os britânicos, que estão a ir às urnas. E para os EUA, que celebram o dia da Independência e seria bom celebrarem também uma visão de futuro.