Quando a diretora-geral da Saúde recomendou aos portugueses que não adoecessem em agosto, esqueceu-se de acrescentar que o conselho era extensivo às parturientes. O caso da morte de uma grávida com pré-eclampsia grave por uma paragem cardiorrespiratória, durante o transporte, por falta de vaga na neonatologia do Hospital de Santa Maria acabou por ser o indigesto “bacalhau à Braz” que precipitou a queda da ministra da Saúde, Marta Temido. Isto aconteceu, não nas berças de uma região recôndita, mas no principal hospital do País. É verdade que a governante agora demissionária passou por um enorme teste de stresse durante a pandemia, tendo-o superado com êxito. A sua aparente fragilidade (em certos momentos chegou a ir às lágrimas) acabou por humanizá-la, enquanto a sua resiliência perante a provação era reconhecida, ao ponto de ter sido, por breves instantes, a ministra mais popular do Governo. Numa célebre tirada, num congresso do PS, António Costa, ao apadrinhar a sua inscrição como militante do partido, catapultava-a para o lote de presumíveis sucessores, à frente dos destinos dos socialistas – quando ele, claro, se dispusesse a “pôr os papéis para a reforma”. Onde é que isso já vai!…
António Costa, num congresso do PS, catapultava Marta Temido para o lote dos seus presumíveis sucessores. Onde é que isso já vai!..
É verdade que, se Marta Temido, cumprida a missão, tivesse abandonado o Governo, com o final abrupto da última legislatura, e tivesse recusado ser reconduzida no novo Executivo de maioria absoluta, teria saído em grande a com o prestígio intacto. Era previsível, aliás, que a fatura paga pelo SNS, depois de dois anos em que as políticas públicas de saúde só se preocuparam com a Covid-19, negligenciando tudo o resto, acabaria por resultar num doloroso day after. As repetidas afirmações do Governo de que o SNS teria demonstrado a sua resistência, solidez e competência são desmentidas pela dura realidade: o foco na pandemia precipitou a erosão do sistema, o que prova que ele não estava preparado.
Mas a recondução de uma esgotada Marta Temido é, ela própria, uma alegoria para o Governo de maioria absoluta. António Costa que muitos, durante a campanha, tinham visto cansado e, aqui e ali, farto, optou por reciclar uma equipa também ela esgotada e farta. Onde mexeu, mexeu geralmente mal: entraram alguns ilustres desconhecidos que, independentemente da competência técnica, nada acrescentaram politicamente. E, ao trazer para o Governo todos os seus supostos delfins, pode ter criado um vazio no partido e, ao mesmo tempo, potenciado um saco de gatos de humores imprevisíveis. A falta da ponderação de um Pedro Siza Vieira é visível e o seu substituto na Economia não tem peso político. Já nas Finanças, saiu João Leão – e a primeira coisa que o sucessor, Fernando Medina, arranjou, foi uma crise, com uma nomeação polémica (o caso Sérgio Figueiredo). Outro peso pesado reconduzido, Pedro Nuno Santos, revelou-se incontinente com o despacho (logo revogado pelo “chefe”…) sobre o novo aeroporto. A ministra da Agricultura, numa rara tirada de conteúdo político, resolveu confrontar um parceiro social com a sua suposta falta de apoio ao PS, nas últimas eleições. E o ministro da Administração Interna, embora uma boa aquisição – pior do que Eduardo Cabrita era difícil – foi submergido pelo pior ano de incêndios desde 2017, provando-se que a boa estrela do seu antecessor, no que aos fogos florestais diz respeito, fora exclusivo mérito de verões frescos e húmidos. Por último, entre outros casos e “casinhos”, começa a emergir a polémica da retirada à PJ das competências relativas à Interpol e à Europol, o que tresanda a falta de noção do primado da separação de poderes e a tentativa de governamentalização de setores importantes da investigação judicial.
Marta Temido, demissionária, vai escolher uma equipa [Comissão Executiva da DGS] com que já não vai trabalhar, deixando-a em herança ao seu sucessor, seja ele quem for…
Poder-se-ia dizer que um Governo acossado por bancadas de oposição em maioria, no Parlamento, mostrasse nervosismo e desse tiros no pé – estou a lembrar-me do segundo Governo Sócrates. Mas seria difícil imaginar que um executivo senhor de uma confortável maioria absoluta, conquistada tão recentemente, se afundasse, em tão pouco tempo, em tantas trapalhadas. Aconteceu com Balsemão, no início dos anos 80, e com Santana Lopes, em 2004 – mas esses eram primeiros-ministros com défice de autoridade, por não terem sido eleitos, mas sim substitutos. E eis como uma maioria absoluta acaba por ser um fator de instabilidade, onde se julgava garantida a estabilidade. E eis como, incrivelmente, isso invoca os tempos antigos dos governos provisórios ou os de maioria relativa pré-adesão europeia…
Voltando à questão da Saúde: o primeiro-ministro anunciou que a substituição de Temido vai demorar algum tempo. Alegadamente, Costa deseja que seja ela a fechar o dossiê da nova direção executiva dõ SNS, criada, recentemente, por decreto, e suposta panaceia para todos os males do Serviço Nacional de Saúde. Parece que o conselho de ministros deve aprovar a constituição desta direção no próximo dia 15 e que Costa não quer adiar mais. Isto é a trapalhada em cima da trapalhada. Quer dizer: Marta Temido, demissionária, vai escolher e nomear uma equipa com quem já não vai trabalhar, deixando-a em herança ao seu sucessor, seja lá ele quem for. Para sermos suaves, digamos que isto não se percebe.