A 23 de agosto de 1939, em Moscovo, Joachim von Ribbentrop, ministro dos Negcócios Estrangeiros da Alemanha nazi, e Viatcheslav Molotov, seu homólogo da União Soviética comunista, assinam o famoso Pacto Germano-Soviético, sob o olhar sorridente de um José Estaline que também fica na fotografia. Para além do articulado revelado do tratado de não agressão – nos dez anos seguintes os dois países não cometeriam qualquer hostilidade mútua nem interviriam para ajudar, um contra o outro, países terceiros – algumas cláusulas secretas previam, já, a partilha futura dos territórios da Letónia, Lituânia, Estónia, Finlândia, Roménia e Polónia (vem de então a anexação da região de Lviv, hoje integrada na Ucrânia) entre o Reich e a Rússia.
No auge do combate ideológico entre comunistas e fascistas, o pacto de não agressão entre Hitler e Estaline caiu como uma bomba junto dos partidos comunistas da Europa, praticamente todos vassalos de Moscovo. Subitamente, e sem aviso prévio direto ou quaisquer instruções pelos canais da Internacional ou do Comintern, as narrativas de confronto e a diabolização do inimigo nazi tinham de ficar em suspenso, provocando uma crise de identidade sem precedentes e deixando mentalmente desarmados os incrédulos militantes de base. Em Portugal, o PCP não foi exceção. Enquanto os dirigentes se desmultiplicavam em rebuscadas explicações para darem o dito por não dito, muitos militantes desiludidos confrontavam o partido com as suas contradições – ou simplesmente, saíam. Com a guerra a rebentar e o blitzkrieg das botifarras nazis a espezinharem os países livres da Europa Ocidental, dirigentes como Álvaro Cunhal justificavam o acordo de não agressão germano-soviética pelo facto de o conflito – que viria a tornar-se Mundial – não passar de “uma guerra burguesa” disputada entre “países capitalistas”. Nesta narrativa para militante ouvir, só faltava dizer que deviam perder todos. A própria guerra era um sinal da “decadência do capitalismo” e a sociedade socialista da gloriosa União Soviética fazia bem em lavar as mãos da autofagia ocidental. No fundo, a culpa era toda do “complexo militar industrial” do Ocidente, argumentos que, ao fim de 83 anos, nada mudaram, como se vê pelas posições do PCP, durante a presente agressão da Rússia à Ucrânia. Claro que, com a invasão da URSS pela Vehrmacht de Hitler, em junho de 1941, e com a entrada de Estaline na guerra, ao lado das potências “capitalistas”, a começar pela Grã-Bretanha, os comunistas portugueses lá tiveram de fazer mais outra das suas incríveis piruetas, com vários flic facs à retaguarda.
Traumatizados pelas invasões de 1956 e de 1968, húngaros e checos quiseram aderir à NATO, claro
Em 28 outubro de 1956, na Hungria, depois do movimento de massas democrático, liderado pelos estudantes e iniciado cinco dias antes, o governo pró-soviético de Budapeste caía e subia a primeiro-ministro um reformista que, formado em Moscovo, havia sido ministro da Agricultura mas que, devido às suas ideias pró-democracia, tinha sido saneado um ano antes. Imre Nagy preconizava, então, uma série de reformas democráticas, a começar pela desovietização do seu país, que devia passar a ser neutral. Em poucos dias, as forças do Pacto de Varsóvia – que, neste caso, como no de Praga, 12 anos depois, eram um eufemismo para carros de combate russos -, invadiram a capital húngara, submetendo a resistência com particular brutalidade, perante os apelos lancinantes dos democratas húngaros a pedir uma intervenção da NATO que os ajudasse . Aliás, isto explica bem por que razão os países de Leste viriam, em dominó, a aderir à NATO, após a queda do Muro de Berlim: mais do que um maquiavélico plano dos EUA de cerco à Rússia – que ninguém, no seu perfeito juízo, imagina que venha a ser atacada pelo Ocidente… – a adesão da Hungria, da Polónia, da República Checa, dos países bálticos e tutti quanti deve-se, isso sim, à necessidade imperiosa de proteção contra o imperialismo russo que, desde o século VIII, avança, em revoadas, seja sob o domínio dos czares, seja sob a tutela dos comunistas, seja sob a ambição do atual regime populista cleptocrático.
Concluindo, com a revolta abafada, um novo regime fantoche imposto em Budapeste e Nagy executado dois anos depois, o PCP (e todos os seus congéneres satélites moscovitas) voltava a caucionar esta vitória “das forças progressistas contra a infiltração reacionária e imperialista” na Hungria. E, de novo, foi difícil explicar o inexplicável a militantes atónitos – muitos dos quais rapidamente se tornaram dissidentes.
De 5 de janeiro a 2 de agosto de 1968, na então Checoslováquia, decorre a Primavera de Praga. O dirigente Alexander Dubcek ensaia espetaculares reformas democráticas, tenta liberalizar a economia, promove a liberdade de imprensa e ensaia o caminho para um “socialismo de rosto humano”, expressão recuperada em discursos posteriores (Mário Soares, durante o PREC). Os tanques soviéticos do Pacto de Varsóvia irrompem, finalmente, pela capital, e esmagam, mais uma vez com a brutalidade russa, a esperança primaveril dos checos, impondo a continuação do longo inverno comunista. Desta vez, os danos, no PCP, são maiores do que antes. O esmagamento da Primavera de Praga provoca, no comunismo filo-soviético em que o PCP se inscreve, danos reputacionais irreversíveis. Numa reunião de oposicionistas portugueses, realizada nos arredores de Paris, organizada pelo PCF, para a qual são convidadas personalidades independentes, como Jorge Sampaio, Álvaro Cunhal defende as teses moscovitas com os argumentos de sempre – os de ontem e os de hoje, expressos por dirigentes como João Oliveira: tudo é aceitável para combater “o imperialismo dos EUA” – e do seu, supõe-se, “complexo militar-industrial”. Como confessa Sampaio, com marcada ironia, ao seu biógrafo, José Pedro Castanheira, “fiquei esclarecido…”.
Não admira que a República Checa tenha sido uma das primeiras a querer aderir à asa protetora da NATO, desmentindo, assim, a tese comunisto-cleptocrático-russa, subscrita pelo PCP, do “alargamento agressivo” da Aliança Atlântica a Leste… Como sempre, o “alargamento” era defensivo.
Na Praça Venceslau, em Praga, testemunhando o desespero dos checos face à agressão russa, uma placa instalada no chão homenageia, in loco, o sacrifício do estudante de Filosofia, Ian Palach, que se imolou, pelo fogo, frente aos tanques enviados por Brejnev. E Milan Kundera inspira-se no movimento democrático de Praga para escrever “A Insustentável Leveza do Ser”. Mas não tão insustentável como as posições do PCP.
Não aprendendo com os seus próprios erros e persistindo numa teimosia dogmática de cunho negacionista, o PCP volta a sofrer uma larga sangria, na sequência da posição tomada após o Golpe de Moscovo, em agosto de 1991. Com os tanques dos duros do ex-regime na rua, um homem, em cima de um blindado, torna-se o reverso da imagem de Lenine, quando este desembarcara, em abril de 1917, na estação Finlândia, em Petrogrado: Boris Yeltsin, presidente da República da Rússia (inserida na Comunidade de Estados Independentes, sucessores da extinta URSS) defende a ordem constitucional e derrota, quase sozinho, os saudosistas soviéticos. E usa com a mesma mestria do atual presidente ucraniano, Volodomyr Zelensky, a pantalha mediática, tornando-se o homem forte da futura Rússia. Apanhado no seu labirinto sem saída, Michkail Gorbatchev está ausente, de férias, e passa ao lado dos acontecimentos. Pouco depois, perante um Yeltsin triunfante, é obrigado a assinar a resignação. Para que se saiba que nem tudo é a preto e branco e que não existe santidade neste mundo (nem sequer a ucraniana…), acrescente-se que Gorbatchev se encontrava a banhos numa região que sempre foi, para os russos, o Algarve deles: a Crimeia. Já ouviu falar?…
Retomando o fio à meada, o PCP foi um dos poucos partidos comunistas do mundo a apoiar os golpistas, mesmo contra a evidência dos ventos da História e esquecendo o pequeno pormenor da queda do Muro de Berlim e obliterando a vontade dos povos oprimidos pelo comunismo soviético. Em estado de negação, o PCP parece uma personagem do filme de coprodução franco-russa, “O Concerto” (Le Concert, de Radu Mihaileanu, 2009, um dos melhores filmes de produção europeia de sempre e que vivamente recomendo) em que um velho estalinista russo pretende encontrar-se com os seus camaradas franceses num comício, numa sala de espetáculos, em Paris, e onde apenas comparecem meia-dúzia de idosos senis. Nesta altura, 1991, a erosão irreversível do PCP é já notória, e mais uma revoada de dissidentes abandonam, desiludisos e órfãos, o vetusto partido da classe operária. Pior: alguns, por terem tomado uma posição pública a condenar o golpe, foram inapelavelmente expulsos do partido: Barros Moura, Raimundo Narciso, Mário Lino.
Agora, a Ucrânia. Depois desta, com os dois euro-deputados comunistas a contribuirem para os únicos 26 votos – em 705! – contra a condenação da Rússia, no Parlamento Europeu, o PCP é o idoso senil no meio de uma sala vazia. Literalmente senil, porque nem sequer entende que Vladimir Putin, muito longe de ser um camarada, é um cleptocrata populista, com laivos de extrema-direita. A Rússia há muito tempo que deixou de ser o “Sol na Terra”. Provavelmente, o PCP encarará artigos como este como uma “provocação anti-comunista primária”. Mais provavelmente ainda, vai desaparecer depois desta. Sinceramente, em 2022, não se perde grande coisa.