O primeiro-ministro e o Presidente da República decidiram inaugurar um costume constitucional sem avisar, passe a contradição. Anunciaram inopinadamente, pela voz do dr. Costa, não renovar mandatos de titulares de órgãos de soberania. Não se percebeu ainda muito bem quais, porque, lá está, os costumes precisam de tempo mas, sobretudo, porque as conveniências se disfarçam mal como regras. Depois da incómoda procuradora-geral da República Joana Marques Vidal, foi agora o presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira, que levou guia de marcha.
Se costume havia, este era exatamente o contrário. Ao guarda do dinheiro de todos, renovou-se sempre, mas sempre, o mandato desde há décadas. Mas o homem que lá estava parece que nunca tergiversou e passou este ano a arranjar lenha para se queimar. Quem se mete com o PS, já se sabe, leva.
Quando anunciou, no meio do frenesim dos ajustes diretos da pandemia, que não valia tudo e explicou, “vamos ver quem adjudica a quem e se são sempre as mesmas empresas a contratar com determinadas entidades”, traçou o destino muito antes de o tribunal tentar explicar que aligeirar a eito a contratação pública – como quer o PS – favorece a corrupção.
O primeiro-ministro despediu-o, por telefone, e conseguiu pôr a presidente do Tribunal de Contas o antigo diretor-geral que o inquérito crime das PPP ilustra como prestimoso colaborador do governo Sócrates, no tal visto de que as PPP precisavam para nos esticar a conta que estamos a pagar.
No dia da posse do novo titular, o Presidente da República fez um discurso absolutamente desconcertante. Como se não legendasse o que nos estava a ser servido, elogiava sem parar o homem que não reconduziu, e não podia reconduzir, depois de anuir pelo silêncio ao conveniente “princípio” anunciado pelo primeiro-ministro. Parecia estar a renomear o despedido, enquanto de facto dava posse ao escolhido de Costa, que, de lado, calado, parecia estar ao comando. Deprimente.
Nessa noite, Paulo Campos voltou à televisão. A lei de Murphy, right?… Explicou que a ajuda do novo presidente José Tavares ao aumento da despesa das PPP foi “absolutamente legal” e, de resto, “enquadrada por pareceres dos senhores professores Sérvulo Correia e Marcelo Rebelo de Sousa”. Perturbador.
Rui Rio pôs a cereja em cima do bolo. Segundo as crónicas, perante duas opções, chamado a opinar, não lhe ocorreu hesitar e/ou declinar. Desempatou a favor do nomeado. Pecou sem provar, portanto.
E assim temos a coisa a que chamamos República e a democracia que a ampara.
No dia a seguir, sem que ninguém reparasse, o Supremo Tribunal Administrativo caucionou – até por via “das recomendações da OMS” – uma coisa a que chamou “Estado de Emergência Sanitária”. Para a irritação ser maior, no mesmo dia em que os tribunais de Madrid faziam respeitar uma coisa chamada Constituição, que não deu muito trabalho, por acaso.
Talvez valha a pena parar e perceber que isto anda mesmo tudo ligado.
Se aceitarmos que nos limitem as liberdades constitucionais por decreto regulamentar, também podemos ficar imunes a este triste espetáculo que nos é servido com a substituição de titulares incómodos nos órgãos de soberania. No fundo, abusam, porque sabem que podem. É triste e é nestas alturas, quando tudo parece uma casa de papel vulnerável ao primeiro sopro, que assusta ver a democracia, que parecia para sempre, morrer todos os dias um bocadinho pela mão da nossa apatia.
(Opinião publicada na VISÃO 1441 de 15 de outubro)