O termo “utilitarismo” não tem as conotações mais favoráveis. Todavia, como é usado na filosofia moral, designa apenas a perspetiva de que o princípio fundamental da ética consiste, grosso modo, numa exigência de promover imparcialmente a felicidade (ou o “bem-estar”).
Não somos todos utilitaristas. A minha pergunta é retórica, portanto — mas não gratuita. A razão de a ter colocado ficará clara dentro de alguns parágrafos. Antes disso, gostava de elucidar os fundamentos da oposição mais vincada à eutanásia, que reside não no utilitarismo, mas na bioética católica. Esta, por sua vez, deve muito ao pensamento moral de S. Tomás de Aquino, pelo que chamarei “tomistas” àqueles que a aceitam.
Para repudiar toda e qualquer forma de eutanásia, o tomista apela ao princípio seguinte: é sempre imoral tirar intencionalmente a vida a um ser humano inocente. Mas será isto verdade? Será sempre errado fazer tal coisa? Suponha-se que, na posse das suas faculdades, um determinado ser humano quer que lhe abreviem a vida. Suponha-se também que, por incapacidade ou doença muito graves, a sua vida futura será tão má que, de facto, para ele será melhor que esta termine. Por comparação com a vida miserável que poderá restar-lhe, a morte será um benefício. Em circunstâncias como estas — dirá quem defenda a eutanásia voluntária —, tirar intencionalmente a vida a um ser humano inocente poderá muito bem nada ter de imoral.
Poder-se-á pensar que o tomista se recusa a admitir a segunda suposição e que, por isso, está disposto a afirmar que nenhuma vida humana pode ser má ao ponto de a morte constituir um benefício comparativo. Contudo, nada o compele a enveredar por esta via temerária. Temerária porquê? Porque implica que a continuação da vida é sempre do interesse de quem vive — e isto, a ser verdade, à partida tornaria boa ideia fazer sempre o possível para prolongar mais um pouco a vida de um paciente, mesmo que ele seja um doente terminal em agonia. Só um sádico ficaria encantado com esta ideia.
Qualquer pessoa razoável admitirá, então, que em certas circunstâncias a morte será um benefício para quem ainda vive. Se o tomista admite isto, por que razão se opõe sempre à eutanásia? Antes de mais, porque subscreve a Doutrina da Santidade da Vida Humana. Julga que a vida de um organismo da nossa espécie (e de nenhuma outra espécie, aliás) tem um valor intrínseco insuperável logo desde a fase embrionária. Este valor reside, por assim dizer, no próprio sujeito humano individual, havendo que não o confundir com a qualidade da sua vida — que, como sugeri ser bastante consensual, pode tornar-se miserável ao ponto de ser desumano fazer todos os esforços para protelar a morte. (Aqui esclareço a confusão recorrente entre estes dois conceitos de “valor da vida”.)
O tomista aceita também a Doutrina do Duplo Efeito. Esta diz-nos, em traços larguíssimos, que não se pode produzir intencionalmente um mau efeito de modo a realizar um bom efeito, embora por vezes seja aceitável realizar este último se o mau efeito, em vez de intencionado, for meramente antevisto. Nesse caso, o mal causado será apenas um “efeito colateral” do meio escolhido para obter o bom efeito.
Conjugando sobretudo estas duas doutrinas, que são centrais na bioética católica, o tomista chega ao princípio de que é sempre errado tirar intencionalmente uma vida humana inocente. E assim condena a eutanásia — pois esta, por definição, implica sempre uma intenção de tirar a vida (ou de deixar morrer).
Acontece que as doutrinas em causa se revelaram imensamente problemáticas. Na verdade, poucos filósofos morais aceitam ambas. A distinção entre produzir um mal intencionalmente e produzi-lo como mero efeito colateral, além de difícil de clarificar, é de dúbia relevância moral. Mesmo que tenha alguma relevância, está longe de ser óbvio que haja um sempre um desrespeito pela santidade da vida humana quando se tira uma vida inocente intencionalmente, mas não quando se causa uma morte como efeito colateral. E será que tirar intencionalmente uma vida com uma qualidade expectável horrível, a pedido do próprio, constitui mesmo um desrespeito da “santidade” da vida humana? Porquê?
Não vou explorar aqui as minúcias e os enigmas da bioética católica. Em vez disso, vou apontar um facto respeitante à discussão pública da legalização da eutanásia: este é conduzido, por aqueles que querem que a eutanásia continue proibida, de uma forma marcadamente utilitarista. Ou seja, a legalização da eutanásia é condenada não à luz dos pressupostos da bioética católica, mas apontando-se as suas consequências sociais perniciosas — o seu impacto globalmente negativo no bem-estar geral.
Será isto muito surpreendente? Não me parece. É que compelir todos os cidadãos a viver e a morrer segundo os ditames da ética inspirada em S. Tomás de Aquino não é algo que, numa sociedade livre, se afigure tolerável. Dada esta perceção, hoje felizmente generalizada, resta aos que mais se opõem à eutanásia alegar que a sua legalização teria consequências sociais muito más. Qualquer pessoa razoável, seja qual for o seu credo ético, será sensível às considerações deste género. Não é preciso ser um utilitarista para lhes ser sensível.
Há outro aspeto desta discussão que não deverá causar espanto. Como, no fundo, aquilo que mais motiva a oposição à eutanásia não é uma preocupação com o bem-estar geral, há uma tendência para dramatizar os possíveis maus efeitos da sua legalização. E assim, quando devíamos contar com uma apreciação sóbria e isenta dos factos, somos alarmados com histórias mal contadas, ou com descrições criteriosamente incompletas da realidade jurídica dos países que permitem a eutanásia. Um único abuso, seja ele real ou apenas imaginário, será promovido a prova indesmentível de que qualquer forma de legalizar a eutanásia conduzirá infalivelmente ao abismo moral. Espelhando a histeria com que, noutras paragens ideológicas, se aponta para uma omnipresente “cultura da violação”, faz-se da eutanásia um elemento da “cultura da morte”. Como não podia deixar de ser, Hitler é uma aparição constante neste apelo ao medo.
E os verdadeiros utilitaristas? Esses, de uma forma ou de outra, defendem que a lei permita a eutanásia voluntária. Defendem que o faça cautelosamente, precavendo abusos e salvaguardando os interesses de quem possa querer morrer para ser poupado a um destino degradante. Nisto estão de acordo com muitos, mesmo muitos, dos que não subscrevem o utilitarismo.