Muito se tem falado a propósito da utilização na investigação criminal dos cerca de 715 mil documentos que o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação fez chegar aos órgãos de comunicação social e que terão sido obtidos por meio de acesso não autorizado a um ou vários sistemas informáticos (hacker).
O primeiro ponto a assinalar, porque quanto a esse parece não haver opiniões discordantes, é que o MP sempre que tomar conhecimento da notícia de um crime deve abrir um inquérito de forma a apurar se existiu crime e quem são os responsáveis e não estabelecendo a lei quaisquer reservas quanto à notícia do crime parece que o conhecimento de tais elementos deverá dar origem à abertura de um inquérito.
O segundo ponto, porque também consensual, é que quem acede a um sistema informático não aberto ao público, sem permissão legal ou sem estar autorizado pelo respetivo proprietário ou proprietário do direito sobre o mesmo, comete, pelo menos, um crime de acesso ilegítimo.
Já poderá ser mais controvertida a questão relativa à utilização dos elementos obtidos através da prática de um crime para prova de um outro crime.
Penso que mais do que afirmar certezas importa uma reflexão crítica sobre a matéria, porque é uma constante em qualquer sistema probatório a oscilação entre a aspiração à verdade e o respeito pela legalidade, tendo a cada momento que se afinar os pratos da balança de forma a que se encontre um equilíbrio.
Neste jogo de difícil equilíbrio parece-nos que deverá ser feita uma distinção entre meios de obtenção de prova no âmbito do decurso de uma investigação criminal e levadas a cabo pelo investigador ou por terceiros com o conhecimento e conivência do mesmo e elementos com potencial valor probatório, obtidos por terceiro, ainda antes do início de uma investigação criminal e sem que para a sua obtenção o investigador tenha colaborado ou incentivado.
Num Estado de Direito Democrático é exigido ao Estado que busque a verdade, mas não a todo o custo, só a busca da verdade por meios justos e leais é conforme com o Estado de Direito, ainda que para a salvaguarda desses interesses se tenha eventualmente de renunciar à descoberta da verdade material. É esta a razão de ser das proibições de prova.
Neste sentido parece ser de excluir a utilização de provas obtidas durante uma investigação criminal pelo próprio investigador ou por terceiro com o seu conhecimento e conivência através da prática de um crime, como o de acesso ilegítimo.
Mas deverá o raciocínio ser o mesmo quando o Estado em nada contribuiu para a sua obtenção e ser excluída, em qualquer circunstância, a valoração no âmbito de um determinado processo de um conjunto de documentos obtidos por um terceiro através do acesso ilegítimo a um sistema informático?
Parece-nos que aqui a resposta não é tão líquida. O que está em causa não é já os meios utilizados pelo Estado para a busca da verdade, mas uma ponderação de valores entre o interesse coletivo do Estado na realização da justiça e os direitos fundamentais do indivíduo constitucionalmente consagrados, como o direito à intimidade da vida privada e familiar, à inviolabilidade do domicílio, ao sigilo da correspondência e das comunicações.
Somos da opinião que nunca poderão ser valorados os documentos obtidos por meio de intromissão da vida privada, na correspondência ou nas telecomunicações por estarem protegidos pela tutela de inviolabilidade dos direitos fundamentais.
Já outro tipo de documentos como contratos, extratos bancários, faturas, recibos, orçamentos, elementos de contabilidade, que foram obtidos por um terceiro através de um acesso ilegítimo, antes de qualquer investigação criminal, entendemos que quanto aos mesmos nenhum direito fundamental estará a ser violado, pelo que o interesse na realização da justiça e na descoberta da verdade material se deverá sobrepor ao interesse individual e, não estando previstos expressamente como provas proibidas, poderão ser utilizadas.
A sua utilização e valoração num processo criminal exigirá sempre que a autoridade judiciária consiga comprovar a sua genuinidade.