Parti triste. Na plataforma da estação de comboios do Porto, uma das minhas filhas ficou a chorar abraçada às pernas do pai. A viagem ia ser longa: toda a noite até Madrid e depois, num outro combóio, chegaria na tarde do dia seguinte a Valência. Tinha imaginado que um “wagon-lit” era um compartimento luxuoso como eu vira no “Crime no expresso Oriente”. Quando abri a porta deparei com um cubículo com três beliches de cada lado onde já dormiam cinco pessoas. A mim restava-me um tabuleiro no último andar, ao lado de um alemão que tresandava dos pés e roncava consolado. Por baixo, tinha por vizinha uma japonesa que aproveitara a viagem para pôr a roupa interior a secar numa corda de nylon esticada sobre o seu corpo. O ar era quente e pegajoso. Antes de adormecer disse mais uma vez mal do meu espírito aventureiro que me conduzia frequentemente a situações incómodas.
Ia pela primeira vez a uma reunião da Sociedade Espanhola de Neurologia Pediátrica. Anos antes, ainda interna de pediatria, fizera um estágio de Neuropediatria no Serviço do Professor Lyon em Bruxelas. Aí, numa reunião, tive a oportunidade de conversar com o Professor Aicardi e este aconselhou-me a fazer um estágio com o Dr Emílio Fernandes- Alvarez em Barcelona. Terminei a Pediatria e comecei o Internato de Neuropediatria. Resolvi então escrever ao Dr. Emílio Fernandes, solicitando-lhe um estágio de 4 meses no seu Serviço, mas ele respondeu-me que só me aceitaria por um período mínimo de 6 meses.
Nesse tempo eu ganhava muito pouco dinheiro e todas as despesas de congressos e estágios não eram patrocinadas. Para além disso, tinha duas filhas de cinco anos e uma saída de seis meses era-me impossível. Decidi meter as pernas ao caminho e ir conhecer pessoalmente o Dr. Emílio Fernandes, certa de que o faria mudar de ideias. Era esse o principal objectivo da minha ida aquele congresso.
As coisas não me tinham corrido lá muito bem desde o início. O hotel mais barato já estava ocupado quando me inscrevi e apenas consegui alojamento num de preço médio, para a segunda e terceira noites. Para a primeira noite apenas conseguira um quarto num hotel de cinco estrelas caríssimo. Quando cheguei a Valência ia morta de cansaço e quase desidratada. Não tivera tempo de comer em Madrid e o combóio que me levava a Valência parava praticamente em todas as estações, o que fez com que eu só chegasse às 17 horas do dia seguinte.
Quando cheguei à recepção do hotel com a roupa amarrotada, morta de fome, sede e cansaço e a arrastar uma mala, mais parecia um peregrino a cumprir uma promessa e o recepcionista olhou para mim como se eu me tivesse equivocado. Depois de descansar no quarto e trocar de roupa, dirigi-me ao local do congresso para receber a documentação. Aí fiquei informada de que ia haver uma recepção o que me agradou duplamente: ia comer de graça e talvez conhecesse alguém.
A recepção era imponente, no claustro dum palácio e estava imensa gente com ar de festa. Conversavam alegremente em grupos e, mais uma vez, lamentei ter ido só. Não conhecia nem uma cara no meio de centenas de pessoas! Comecei a dar razão aos meus colegas que me perguntaram estupefactos o que ia eu fazer a uma reunião a Espanha onde não conhecia ninguém. Por fim, cansada de andar às voltas, decidi ir novamente comer uns aperitivos. Na bandeja apenas havia um pequeno pastel e quando estendi a mão para lhe pegar, uma outra mão feminina fez exactamente o mesmo gesto. Olhamo-nos embaraçadas mas logo começamos a rir do ridículo da situação.
– Como te llamas?- perguntou-me – no te conozco!
– Teresa. Sou portuguesa – respondi.
Estupefacta, chamou os seus colegas para lhes apresentar “a portuguesa” que viera do Porto à reunião.
Foi assim que conheci o Carlos Barrionuevo, o chefe da Maria Dolores.
Em pouco tempo, ficaram a saber a razão da minha vinda e prometeram apresentar-me o Emílio Fernandes e convencê-lo a aceitar um estágio mais breve.
A hora ia avançada e o Carlos perguntou qual era o hotel em que eu estava. Expliquei-lhes que ficaria num na primeira noite e num outro nas restantes.
Ao perceber que era eu a pagar os hotéis, ofereceu-se para no dia seguinte me levar com eles no táxi ao outro hotel. Assim aconteceu, mas quando lá cheguei o quarto ainda estava ocupado e deixei a mala na recepção. Quando cheguei ao local do congresso o Carlos e a Maria Dolores aguardavam-me à porta.
– Teresa, vai ao hotel e anula a tua reserva. Falei com a Maria Dolores e ela não se importa de partilhar o quarto contigo. Ela tem um quarto duplo porque o marido estava para vir. Assim consegues poupar algum dinheiro.
Fiquei sem palavras com tal generosidade. Ali estavam duas pessoas que me conheciam há menos de 24 horas e me ofereciam “a sua casa”.
Aceitei de imediato, recebendo aquela oferta como o sinal do melhor presságio na minha futura relação com Espanha. Nos dias seguintes, não só dormi no quarto da Maria Dolores como fui completamente apadrinhada pelo Carlos, que me apresentou a inúmeros médicos e me levou com eles a vários restaurantes.
Finalmente apresentou-me o Dr. Emílio Fernandes e convenceu-o a aceitar o meu estágio. Ainda hoje guardo uma foto desse dia, que o Carlos nos tirou.
Quando voltei a Portugal ri-me de todos os que duvidaram da minha decisão e quando contei o que me acontecera olharam-me desconfiados. Tanta generosidade porquê? Apeteceu-me responder que Deus protege os audazes mas corrigi dizendo que os audazes protegem os audazes.
Estive depois em Barcelona onde aprendi muito e tive a sorte de fazer amigos. Mais uma vez Espanha me conquistara.
Ao Carlos e à Maria Dolores, encontrava-os sempre uma vez por ano nas reuniões da Sociedade de Neurologia Pediátrica. Entretanto, os meus colegas portugueses também começaram a ir e, actualmente, já fazemos reuniões conjuntas das Sociedades Portuguesa e Espanhola!
O Carlos foi-me sempre dando notícias e enviou-me dois livros que escreveu sobre epilepsia.
Oito anos depois, estivemos pela última vez juntos. O círculo fechava-se. Conhecera-o em Valência e despedi-me para sempre também em Valência. Daquela vez fui também a uma reunião, mas como palestrante convidada o que considerei muito significativo, dado ter sido nessa cidade que começou o meu “namoro” com Espanha.
A última imagem que tenho do Carlos é num agradável jantar com todos os palestrantes do congresso. A rir, com um braço por cima dos ombros da sua mulher que tanto amava e com um charuto na mão direita, fazendo um gesto largo.
É assim que o quero recordar: um Homem bom, trabalhador, divertido, que se deu intensamente aos outros e que, talvez por isso, cedo terminou.
Não sei se era religioso e seguramente que mesmo que o fosse não teve tempo para se confessar. Penso porém que um padre apenas lhe poderia ouvir três palavras :
– Confesso que vivi.