Uma tosse rouca precedeu-o. Um som estranho, sincopado, com um ritmo próprio, aparecendo de tal forma a intervalos de tempo regulares, que poderíamos adivinhar quando iria surgir o próximo. Sentou-se à minha frente. Ao lado, a mãe. Ambos pálidos, de cabelo claro e parecendo muito reservados. Ele tem uma face pouco expressiva e parece ansioso. O casaco almofadado acentua o aspecto quase obeso. É a mãe que vai falando, ele apenas tosse ritmicamente, sempre com a mão à frente da boca e, de vez em quando, tem um abalo de todo corpo que o sacode para a frente. Noto que fica incomodado por fazer aquele movimento e que o tenta reprimir ou disfarçar, fingindo que vai intencionalmente observar algo que está sobre o seu regaço. Já correu inúmeros médicos: pediatras, alergologistas, pneumologistas, otorrinos… No dia anterior tinham-lhe feito uma broncoscopia onde nada encontraram de anormal. À médica que lhe fez o exame acendeu-se finalmente uma luz e telefonou-me. Pedi-lhe para ela imitar o som e concordei que deveria tratar-se de um tique, provavelmente um síndrome de Gilles de la Tourette.
Sim, eram seguramente tiques vocais e motores. Só por ouvir aquele som e ver os movimentos do corpo fiz o diagnóstico. Mas para dentro, de mim para mim. Tinha que confirmar com a história clínica pessoal e familiar, avaliar a personalidade do rapaz à minha frente, saber o percurso e os contornos da sua vida, os seus hábitos, manias, gostos, obsessões, medos.
Só a mãe continuava a falar. Ele estava apenas concentrado em controlar a tosse e os movimentos sacádicos do tronco, de forma a eu os não ouvir nem ver. Era o segundo filho de um casal não muito jovem. A irmã tinha vinte e dois anos, doze mais que ele. O Luís era uma “segunda edição” daquele casal, muito desejado, muito amado. Um rapazinho inteligente, reflexivo, introspectivo, sensível. Era pouco sociável. Na escola tinha apenas um grande amigo que o acompanhava desde o infantário. Mas dava-se bem com os outros, não tinha problemas.
– É muito preocupado com a ordem, gosta de colocar os objetos simetricamente? – perguntei
– Sim, gosta de deixar as coisas arrumadas, não gosta que lhe mexam em nada no quarto, os sapatos têm que estar sempre simétricos e, se por acaso alguém lhe desarruma os brinquedos, fica quase irascível. Por essa razão nunca faço as festas de aniversário lá em casa.
– E movimentos repetitivos tais como piscar olhos, revirá-los, abanar a cabeça para o lado, tocar repetidamente em objetos? Já fez isso?
– Sim, desde os cinco anos de idade que tem movimentos estranhos. Vão e vêm e não são sempre os mesmos. Durante um tempo dava pequenos gritos, depois começou a fazer um som parecido com o grunhido de um porco, também já piscou os olhos, torceu a cabeça para o lado, franziu o nariz, abriu a boca…Mas vão e vêm, nunca são os mesmos movimentos ou sons.
– E na escola, é atento?
– É bom aluno mas alguns professores dizem que ele parece estar frequentemente alheado. Mas não incomoda ninguém.
Enquanto eu falava com a mãe e evitava olhar para ele de forma a deixá-lo fazer os tiques à vontade, ele fazia movimentos cada vez mais violentos com o tronco, parecendo estar a receber choques eléctricos. Tinha um ar triste. Muito triste.
– Alguém na família tem ou teve tiques? – continuei.
– O pai ainda tem, doutora. Está sempre a “fungar” e faz também uma coisa estranha que não sei se é um tique…
– Descreva, por favor.
– Quando estamos a falar com ele, ou mesmo quando está a ver televisão, repete a última sílaba da palavra que termina a frase. Até enerva…. Isto é um tique?
– É sim. E como é a personalidade dele? É impulsivo, reage antes de pensar?
– É, é muito impulsivo e prejudica-se muito por assim ser. Enerva-se com facilidade e, em seguida, arrepende-se.
– E doenças psiquiátricas, alguém tem na família?
– A mãe do meu marido tem uma neurose obsessiva. Está sempre a lavar tudo, até já chegou a ter um problema grave de pele por tanto lavar as mãos.
– E o Luís, tem também alguma dessas obsessões?
– Não, doutora. Só pela arrumação e pela simetria dos objetos.
– Luís, quando caminhas na rua, por vezes tentas não pisar os riscos dos passeios?- perguntei.
– Sim, só poiso os pés no chão de dois em dois quadrados. E em casa também faço isso com uma carpete que tem uns desenhos com bolas de cores. Só posso pisar as bolas vermelhas e quando piso uma outra cor, volto para trás e passo novamente pisando só as vermelhas.
– Gostas der tocar nas coisas repetidamente?
– Por vezes faço isso. Não quero fazer, mas tenho de o fazer.
– Tu andas triste, Luís? Os teus colegas da escola estão a aborrecer-te por causa dos tiques? Estás a ser posto de lado?
– Não. Eu tenho amigos. Eles não me dizem nada. Acham que estou doente dos pulmões.
– Mas essa tosse e esses movimentos estão a incomodar-te, não estão, Luís?
– Eu não quero tossir, mas sinto cócegas na garganta e tusso.
– E os movimentos que fazes, esses “safanões”?
– Tenho que os fazer.
Baixou os olhos para o chão com um ar resignado e ,de imediato, teve um abalo com o tronco, como que um sobressalto espasmódico.
– Mas é por causa desta tosse e destes movimentos que não controlas que andas triste?
– Não. É por outra causa.
– E não me queres contar?
– Não sei explicar – respondeu baixinho.
Virei-me para a mãe que estava ao lado, calada.
– Pode ajudar o Luís a explicar-me porque anda triste?
– O Luís não quer crescer. Diz que quer ser sempre criança.
– Como assim, Luís? Queres ser sempre o bebé da casa? O que tem todos os mimos?
– Não é isso.
– Então explica-me, por favor.
– É bom ser sempre pequenino.
– E porque é que é bom ser sempre pequenino?
Fez-se um silêncio. Encheram-se-lhe os olhos de lágrimas e com uma voz quase inaudível disse:
– Porque se eu crescer, vou recordar. E se eu recordar, vou ter saudades do que passou. Eu não quero ter saudades.
Fiquei perplexa. Seguiu-se novo silêncio, o tempo de eu assimilar o que ele me dissera e preparar cautelosamente o que dizer a um menino de dez anos com uma sensibilidade como eu nunca vira. Lembrei-me do meu pai e de uma conversa que tivera com ele muitos anos atrás. Sobre envelhecer e tempo para pensar.
– Não tenhas medo, Luís, não vais ter tempo de ter saudades. Daqui para a frente todos os dias te vão acontecer coisas novas, vais ter muitas coisas para viver, vais fazer amigos, arranjar namoradas, vais aprender imensas coisas. Tudo vai ser novo. Só quando já fores da minha idade é que vais ter mais tempo para recordar, porque muito menos novidades acontecem quando se é mais velho. E começamos a dar mais valor a coisas pequenas, a coisas que antes nem reparávamos.
– E a doutora não tem saudades?
– Tenho, tenho muitas vezes saudades. Mas é o preço que se paga por se viver a vida. Quando fores mais velho e se tiveres tido uma vida cheia de emoções, vais pensar na nossa conversa.
– Então se calhar é melhor não ter emoções. Se depois se tem saudades…
– Não, não concordo. Isso faz-me lembrar as pessoas a quem morreu um cão que gostavam muito e dizem que não vão querer ter outro para não sofrerem de novo. Eu não sou assim. É tão bom ter a amizade de um cão, que eu quero ter sempre um, mesmo sabendo que vou sofrer quando ele partir. Viver é assim, tem riscos. Nem sempre corre bem. Por vezes sofremos. Mas para que serve uma vida sem emoções?
O Luís olhou-me sério, a cabeça baixa e os olhos levemente desviados para cima. Um olhar à “Lady Di”, pensei. Quase que se podia ver o seu cérebro a carburar, a medir, a analisar cada palavra que lhe eu ia dizendo. É raro conhecer uma criança daquela idade com tal capacidade de reflexão. Por isso é também preciso ter muito cuidado com o que dizemos, pois vai ser digerido até à última letra, vírgula, acento circunflexo.
Tive que o medicar, explicando antes os objectivos do tratamento, a escalada lenta da dosagem, os possíveis efeitos indesejáveis, um dos quais a curto prazo, o considerável aumento de peso. Inquiri os seus hábitos alimentares e detetei muitos erros, muitas batatas fritas, bolachas, gorduras, refrigerantes. Num papel fiz um esquema rápido de um novo plano alimentar e pedi-lhe para retirar tudo que fosse supérfluo. A mãe ainda argumentou, dizendo que, naquele momento, comer era dos poucos prazeres que ele tinha. Eu retorqui que, quando o Luís se visse mais elegante, também daí tiraria prazer…. Aconselhei-os consultar na internet alguns sites de associações de doentes com Síndrome de Tourette e para verem um filme americano sobre uma história verídica da vida de um professor que tinha a mesma doença (“First in class”).
Foi ele mesmo que pegou no papel da receita, o dobrou em quatro e o meteu no bolso da mochila, juntamente com um outro onde estava marcada a data da minha próxima consulta e o do esquema alimentar.
Passaram três meses e muitos outros doentes pela minha sala de consulta. Há uma semana revi o Luís. Vinha mais magro e com menos tiques.
– Então, Luís, como vai isso?
– Sinto-me melhor. Estou com menos tiques.
– Tens tomado a medicação?
– Doutora – disse a mãe – quando chegamos a casa após a sua primeira consulta, estivemos todos a conversar e achamos que íamos esperar um pouco. O Luís gostou muito de conversar consigo e quando chegou a casa decidiu deitar fora todos os alimentos que não eram saudáveis. Perdeu cinco quilos até agora.
– E os tiques? – perguntei eu.
– Está melhor. Tosse menos e já não dá as sacudidelas do tronco. Agora tem um outro de “fungar” mas este incomoda menos. Falamos com a diretora de turma e explicamos que o Luís tem um Síndrome de Tourette. Entretanto a professora interessou-se pelo assunto, foi ler e em seguida fez uma sessão na escola para todas as crianças da turma dele. Até projetaram o filme que a doutora aconselhou. Agora, na escola todos sabem o que é o síndrome de Tourette e têm sido muito solidários com o Luís.
Fiquei contente. A primeira consulta com aquele doente tinha-me tomado mais de uma hora. Por causa disso, um outro que eu deveria ver quarenta minutos depois apresentou uma queixa no livro de reclamações. É difícil trabalhar assim. Nos consultórios privados os doentes não reclamam por esperar…. Os horários rígidos não podem ser sempre aplicados. Não podemos cortar a palavra às pessoas quando os problemas são complexos e as histórias longas. E há doentes que vêm de tão longe para que os ouçamos!
Foi o tempo a mais que “gastei” a falar com aquele doente que fez com que ele decidisse iniciar uma dieta e tivesse perdido peso. Foi também com esse “excesso de tempo” que os pais compreenderam a doença do filho e decidiram não iniciar a medicação. Foi ainda com esse “desperdício” de tempo que ele falou por fim do seu medo de crescer. Realmente foram só palavras…. Mas, se ditas no momento e da forma certa, podem ter tanta importância!
Senti saudades do tempo em que as minhas consultas não tinham que obedecer a horários rígidos mas sim às necessidades dos doentes, do tempo em que não existia um ecrã de computador entre mim e os que me consultam, do tempo em que não havia tantos toques de telefone, do tempo em que as crianças vinham vestidas com a sua melhor roupa e os pais não vinham de calções e havaianas e com um boné no cocuruto. Senti saudades de mim. Do tempo em que não tinha tempo de ter saudades.
Turiz, 15 de Abril de 2018