Não batia certo. A força começara, progressivamente, a diminuir nos membros superiores. Não havia atingimento da face. Pupilas normais, sem alteração da deglutição. Botulismo não era. Poderia ser uma polineuropatia. Secundária? Não havia história de infecções recentes. Apenas a vacina da hepatite B um mês atrás…Trazia já um saco com exames efectuados no exterior, mas nada de interesse, tudo a atirar sem conhecer o alvo.
O resto do exame físico era normal. Um menino saudável de oito anos que, um mês antes, de forma insidiosa, tinha começado a perder a força nos membros superiores.
Joaquim. Único rapaz, filho mais novo de um casal de lavradores. As irmãs saudáveis, assim como o resto da família. Por aí, nada.
Ele ali estava à minha frente. Lindo como um príncipe sem reino, alto e magrinho, aloirado, olhos grandes cor de mel e sorriso aberto e meigo. Era bom aluno e bom filho. Um menino perfeito. Mau agoiro…
Os meus poucos anos de experiência em Neuropediatria não tornaram óbvio um diagnóstico que agora teria feito à primeira. Pedi uma electromiografia e remarquei consulta para breve. Contudo, o exame não foi feito atempadamente e tive que adiar o nosso encontro. O resultado chegou finalmente passado um mês e meio. As velocidades de condução nervosa estavam diminuídas. A hipótese mais provável era tratar-se de uma polineuropatia desmielinizante. Telefonei aos pais e, passados dois dias o Joaquim estava internado no Serviço de Pediatria para iniciar um tratamento com imunoglobulinas. A atrofia muscular dos membros superiores era agora muito evidente e não tinha reflexos. O resto do exame mantinha-se normal.
De forma súbita, nessa noite começou a ter dificuldade respiratória e, na manhã seguinte, era óbvio que necessitava ventilação mecânica. Foi transferido para a unidade de cuidados intensivos e ligado ao ventilador. Apesar de tudo isso, continuava bem disposto. O tubo enfiado na laringe não permitia que falasse, mas conseguiu escrever num papel que queria ver televisão.
Melhor ainda, arranjei-lhe um vídeo e uma televisão. Como tinha duas filhas com a idade dele, sabia bem do que gostava. Trouxe-lhe uma resma de cassetes de vídeo, entre elas o filme da Pipi das meias altas.
No dia seguinte era sábado e fui de manhã vê-lo ao hospital. Eu era ainda muito nova e não largava os meus doentes. Encontrei-o bem disposto, deitado na cama a ver televisão. Os pais, ao lado, estavam tranquilos ao ver que, finalmente, o filho tinha um diagnóstico e estava a fazer um tratamento específico. Comunicou comigo com gestos e conseguiu-me dizer para deixar mais uns dias o vídeo da Pipi. Tal como eu, ele tinha adorado aquele filme de fantasia rebelde. Estávamos perto do Natal e os pais disseram-me que, a pedido do filho, me iam trazer um presépio de barro. Agradeci, pois se há coisa que gosto é do Natal e de presépios.
Passou o fim de semana. Segunda feira fui direta à unidade de cuidados intensivos para o ver. Quando entrei, uma médica, parecendo ter estado à minha espera, chamou-me para conversar. Era uma Pediatra que me não era simpática, arrogante com os colegas e sempre pronta a criticá-los. Tinha parado de fumar há meses e eu estranhei que acendesse um cigarro com as mãos a tremer. A medo, sem me olhar nos olhos, disse-me que tinha acontecido uma desgraça no dia anterior. Extubaram o Joaquim, pois pensaram que ele provavelmente já iria aguentar sem o ventilador. O problema é que o monitor cardio-respiratório e da saturação de oxigénio se avariara e o alarme não tocou quando ele parou de respirar…. O menino fez uma paragem cardíaca prolongada e quando o tentaram reanimar foi já tarde. Tinha ficado com lesões cerebrais irreversíveis.
Ainda hoje não consigo descrever a dor e revolta atroz que senti. Apeteceu-me matar todo o mundo, gritar, gritar, gritar. Na cama jazia de olhos baços e fixos o meu menino, de novo ligado ao ventilador. Ao lado, os pais, a soluçar, vieram agarrar-se a mim. Não consegui dizer nada. Tinha o corpo tenso, a garganta seca e uma faca cravada no estômago. As lágrimas viriam depois, como sempre.
Naquele dia à noite e por muitos que se seguiram, olhando as minhas filhas, exatamente da mesma idade, embargava-se-me a voz e não controlava as lágrimas. A minha filha Ana indignava-se comigo dizendo que eu não devia sentir aquilo por alguém que não era meu filho. Comecei a deixar de dormir e a ter ataques de pânico. Procurei ajuda. A psiquiatra que me acompanhou, de formação psicanalítica, atribuiu a minha depressão ao facto de a morte do meu irmão ter também ocorrido quando ele tinha oito anos e os ataques de pânico ao medo inconsciente da morte das minhas filhas, também com a mesma idade. Não sei se foi isso. Acho que me bastou a revolta que sentia por uma avaria num monitor ter causado tal catástrofe.
Entretanto o Joaquim foi internado num hospital distrital, à falta de uma unidade de cuidados paliativos onde pudesse ficar. Necessitava de cuidados permanentes e especializados e os pais tinham de continuar a trabalhar. Passado cerca de um ano, à noite, recebi em casa um telefonema da mãe. O Joaquim tinha morrido no hospital com uma pneumonia. Os pais agradeciam-me tudo o que tinha feito por ele e queriam-me entregar o presépio de barro que o filho tinha pedido para me oferecerem. Alguns dias depois tinha um caixote com o meu nome na sala da consulta. Lá dentro, várias figuras de barro, grandes, feitas com moldes, completamente descaracterizadas. Se não fosse oferecido pelo Joaquim, aquele presépio nada significaria para mim. Dá-lo-ia a alguma funcionária da consulta que me fosse mais simpática, tal como ocasionalmente fazia com algumas ofertas. Mas aquele presente era diferente. Aquele presépio passaria a ser o presépio da minha vida, o único que eu colocaria ao lado da minha preciosa árvore de natal.
No fim de semana seguinte, armada de tintas e pinceis e com a ajuda das minhas filhas, decidimos pintar todas as figuras. O manto da nossa Senhora de azul claro, o do São José de castanho, os reis magos de roxo, púrpura, rosa, a vaca, o boi, o burro, cada um da sua cor. Ficou horrível. As figuras pareciam carnavalescas, o São José ficou com um olhar libidinoso e os reis magos pareciam assaltantes. Que fazer? O Natal estava à porta e eu ia usar aquele presépio. Lembrei-me que existiam umas patines de envelhecimento que talvez tornassem o meu presépio mais discreto. Lá fui eu comprar a patine, li as instruções e apliquei uma camada por cima de todas as figuras. Desgraça! Nas instruções do produto que usara dizia que após a aplicação bastava limpar com um pano seco e que a maioria da patine seria removida, sendo o resultado final um “ar envelhecido”. Limpei e voltei a limpar mas as figuras ficaram escuríssimas, de uma cor castanha indefinida e triste. Decidi metê-las na pia da cozinha e com a ajuda de palha-de-aço esfreguei-as vigorosamente. Desta vez ficaram descarnadas e novamente com o barro à vista. Estavam com um ar deplorável! O certo é que aquele era o meu presépio e era aquele mesmo que eu ia usar. Naquele ano, não houve alma que fosse à minha casa que não me perguntasse o porquê de um presépio de natal tão feio à beira de uma árvore tão bonita e requintada.
No Natal seguinte, ainda pensei pintar de novo todas as figuras, desta vez todas de beije, com apontamentos de dourado. Mas uma voz dentro de mim disse que o não fizesse, que o deixasse como estava, imperfeito e com mazelas, quase grotesco, para me lembrar que a vida era assim mesmo, sobretudo a vida de um médico, com falhas, erros, omissões e, mesmo assim, a persistir de pé, a não desistir, orgulhosa como um estandarte.
Passaram-se vinte anos e, apesar de imperfeita, a minha vida tem valido a pena.