Veio só ela e o pai. A mãe não podia faltar ao emprego, com o risco de o perder. Entraram de mão dada e ela vinha com um ar feliz. Faziam um par engraçado: ela pequenina, toda muito redondinha e sorridente, vestida de cores alegres. Ele alto e ossudo, quase escanzelado, de calças de ganga e camisa preta desbotada. Antes de entrarem eu tinha lido a carta que a médica de família me enviara e onde especificava o motivo da consulta. Esta menina de sete anos, Liliana, tinha começado a perder urina, inexplicavelmente, desde há um mês, no período da tarde do horário escolar. Molhava a roupa toda e na escola, eram obrigados a telefonar para casa para a virem buscar, lavar e trocar de roupa. Estava a ser muito complicado porque a Liliana, em seguida, não queria voltar e isso estava a repercutir-se na sua aprendizagem. A médica de família punha hipóteses de diagnóstico muito complicadas como, por exemplo, poder tratar-se de uma epilepsia ou de um tumor medular…..
O pai sentou-se à minha frente e a Liliana foi direta para o canto dos brinquedos.
– Então o que os traz por cá? – Comecei, como de costume.
– A Liliana começou a perder urina na escola. Não sei o que se passa. Ela foi sempre tão limpinha! Com dois anos largou as fraldas de dia e de noite. Nunca mais fez chichi na cama. Agora, desde há um mês, telefonam-me todas as tardes da escola para eu a ir buscar. Está sempre toda urinada, tenho que lhe dar banho, mudar a roupa e depois não quer voltar para a escola… Não sei mais que fazer.
– E ao fim de semana acontece o mesmo? – Perguntei
– Não, é só durante a semana e só à tarde. Quase sempre por volta das 15.30….
– Que estranho! – disse. E o senhor está de tarde em casa? Não trabalha?
– Eu tenho um emprego complicado, doutora. Sou empregado de mesa num restaurante e servimos almoços e jantares. Começo a trabalhar às 10h30, sirvo os almoços e volto para casa
às 15 horas. Depois volto para o restaurante às 18h e só regresso às 23 horas. De terça a domingo é esta a minha vida. Folgo à segunda-feira.
– Então a Liliana quase o não vê…. – disse.
– É, doutora, quando acordo, a menina já está na escola e quando chego à noite já está a dormir….Há dias em que nem uma hora estamos juntos…
– E ela gosta muito de si, não gosta?- pergunto
– Gostamos muito um do outro. Quando era pequenina eu estive desempregado e ela passou mais tempo comigo do que com a mãe. Tem muitas saudades minhas.
– E arranjou forma de estar mais tempo consigo começando a urinar a roupa, não acha? – perguntei.
– Não tinha pensado nisso, doutora, mas agora depois de falar comigo também me parece que o mistério está resolvido….
Durante todo aquele tempo eu ia olhando para o canto dos brinquedos. A Liliana brincava ao faz de conta com o Nenuco, tinha-o despido todo, depois vestira-o com cuidado e agora estava a deitá-lo na caminha. Ao mesmo tempo ia deitando os olhos de lado e estava distraidamente atenta à nossa conversa.
– Liliana, queres chegar aqui um bocadinho à minha beira? – perguntei.
Com os olhos no chão, abeirou-se e colocou-se ao lado do pai.
– Tu estiveste a ouvir a nossa conversa não estiveste, Liliana?
– Eu estava a brincar- respondeu ainda de olhos baixos e remexendo na camisola.
– Não faz mal. Eu conto-te o que estivemos a conversar. Nós achamos que tu andas triste porque o pai trabalha muito e quase não consegues estar com ele. É verdade Liliana?
– É.
– E que queres estar com o pai quando ele está em casa à tarde. Verdade?
– Sim.
– Se o pai passar a estar mais um bocadinho de tempo contigo tu achas que consegues deixar de fazer chichi na roupa?
– Consigo.
– Combinado, Liliana. O pai tem que trabalhar para ganhar dinheiro, mas talvez possa ir buscar-te à escola e passear ou brincar um bocadinho contigo, antes de voltar ao restaurante. Em casa vão conversar os dois, está bem?
O pai, entretanto, tinha pegado nela e sentara-a ao seu colo. Ela poisara a cabeça ao seu peito, pegara-lhe numa mão e encostara-a à sua cara. Era uma imagem enternecedora aquela: um homem cinzento e de ar duro numa atitude tão maternal com aquela criança. Às vezes os pais também são mães ou, melhor dizendo, conseguem também dar aquele “não sei quê” que habitualmente só as mães sabem dar. E quando tal acontece, eles conquistam o direito de reclamar os filhos como seus e conquistam, sobretudo, um amor profundíssimo que historicamente apenas é devotado ao sexo feminino. Ser mãe não é definitivamente ser mulher. Ser mãe é saber cuidar muito, muito bem, é estar atento aos mínimos sinais, é repreender e elogiar no momento certo, é aconchegar a roupa e dar um beijinho antes de dormir, contar a mesma história vezes sem conta, desfazer as riças do cabelo sem o arrancar, passar a noite de vigília ao lado do filho que arde em febre, passar uma vida inteira ao lado de um filho deficiente.
Não pedi nenhum exame pois não necessitava, mas marquei uma nova consulta para dali a três meses, de forma a ter a certeza que tudo se resolvera. Aí daria alta à Liliana, se tudo estivesse bem, tal como eu esperava que acontecesse. Na verdade, aquela consulta tinha tido muito pouco de neurologia…. Mas não era um médico tão ou mais importante pelos diagnósticos que negava do que pelos que fazia?
II
A mãe não percebia. Porque entorta ela tantas vezes as hastes dos óculos?
– Não há dinheiro que chegue para o oculista, Maria! Que fazes tu com os óculos ?
Ela baixava os olhos e respondia:
– Entortam-se-me…..
– Pois vê lá se os cuidas, que o teu pai já não pode com tanto trabalho!
Naquela noite, depois de jantar com a mãe, ajudar a arrumar a cozinha, lavar os dentes, preparar a mochila para o dia seguinte, vestir o pijama, Maria ajoelhou-se no tapete e disse a sua oração.
– “Menino Jesus, descalcinho no chão, mete os pezinhos no meu coração”.
Em seguida acrescentou:
– Faz com que o meu pai venha mais cedo para casa.
– Mãaaaae, já podes vir dar-me um beijo – gritou.
Tirou os óculos com cuidado e poisou-os na mesa de cabeceira. Em seguida deitou-se de lado, virada para a parede, com as pernas encolhidas e abraçada ao seu urso preferido, o “Roncas”.
A mãe puxou o lençol e fez uma dobra por cima da colcha. Alisou-a bem e aconchegou a roupa contra o corpo da filha. Colocou a sua cara encostada à da criança e murmurou:
– Dorme com Deus minha querida!
Apagou a luz e fechou a porta.
Maria deu uma volta na cama, virou-se para a mesa de cabeceira, estendeu o braço e tacteou o tampo. Pegou nos óculos e colocou-os na cara. Virou-se para o outro lado e agarrou-se ao Roncas. Adormeceu em poucos minutos.
Quase à uma da manhã o pai chegou. Tirou o casaco e foi à cozinha. Em cima da mesa estava um prato com a comida que ele deveria aquecer no micro-ondas. Depois de comer foi ao quarto da filha.
– Outra vez de óculos!- pensou.
Retirou-lhos cuidadosamente e beijou-a muitas vezes na face e nos cabelos. Aconchegou a roupa da cama contra o seu corpinho e saiu.
De manhã, quando a mãe entrou no quarto para a acordar, o primeiro gesto de Maria foi levar a mão aos olhos.
– Ele veio dar-me um beijo! – pensou. Colocou os óculos e levantou-se de um pulo para começar um novo dia.
III
Já não podia mais. Aguentava aquilo há dez anos. Nunca, nem uma vez, ela se levantara da cama para dar um biberão, mudar a fralda, dar um remédio, acorrer ao choro de um pesadelo. Agora passava o dia deitada no sofá a ver televisão. Quase não lhes falava. Vivia numa apatia intrigante. Não cozinhava, não limpava. Continuava a trabalhar, apesar de estar a maioria do tempo de atestado médico.
– Vamos separar-nos da mãe? – perguntou ao filho.
– Deixa-me crescer – respondeu a criança.
Ele esperou um ano mas depois não pode mais. Decidiu separar-se e ficou acordado que o filho ficaria ao encargo da mãe. Ele apenas teria direito a um fim de semana de quinze em quinze dias.
Não lhe custou separar-se da mulher. Tinha sido um alívio. Mas do filho… Estava sempre preocupado a pensar nele. Comeria bem? Será que fazia os deveres da escola? Teria levado o fato da ginástica? Iria para a cama a horas? Levaria roupa suficiente naquele dia tão frio? Como se daria ele com uma mãe que nunca o tinha sido?
Nos domingo à tarde em que estava com ele, o Pedro começava a ficar tristonho, a não o largar e depois a chorar, até. Não queria separar-se do pai.
– Tem que ser – dizia-lhe ele mostrando-se forte- Tem que ser! E levava-o a casa da mãe depois do jantar.
Passado meio ano telefonaram-lhe da escola. O Pedro estava a chegar sistematicamente tarde, vinha muitas vezes pouco lavado e não fazia os deveres de casa. Tinha deixado um
bilhetinho que poisado na secretária da professora. Dizia : “Senhora professora, o pai é que sempre tratou de mim. Eu quero viver com o pai.”
A professora contactou o tribunal de menores que decidiu avaliar a situação. A mãe queria continuar a ficar com o filho, mas algo nela parecia não bater certo. Tinha um ar descuidado e triste. O Juiz decidiu pedir uma avaliação médica.
Tinha uma doença psiquiátrica. Estava já medicada há um ano, sem muito sucesso. Visitaram a sua casa e ficaram alarmados com o estado de desordem. Foi decidido que o Pedro passaria a viver sempre com o pai, tendo a mãe direito de o visitar sempre que lhe aprouvesse.
– Quando vens de novo viver comigo, que sou a tua mãe? – perguntou ela um dia, sentindo-se melhor.
– Deixa-me crescer – respondeu novamente Pedro – A mãe é o pai e eu ainda preciso de ter uma… Quando for grande eu vou.
Nunca foi.