I beg your pardon?
Talvez eu não seja a melhor pessoa para criticar o abuso de expressões e palavras inglesas no discurso corrente, uma vez que, quando falo, recorro por vezes a conceitos e vocábulos anglófilos. Vivi nos Estados Unidos, fui o miúdo que idolatrou o Rocky Balboa, torceu pelos americanos na Guerra Fria como se fosse um jogo do Spectrum – sou parte do lugar comum coletivo, parido pelo glamour e a ilusão do cinema americano, que acha que certos momentos, ofensas ou bordões funcionam muito bem em inglês. No entanto, raramente uso estrangeirismos quando escrevo. E embora acredite que as línguas devem ser promíscuas, esponjosas e pletóricas, assimilando, corrompendo e evoluindo, também acredito que o português é suficientemente sexy, rico e criativo para que não estejamos constantemente a recorrer ao inglês.
Pensei nisto enquanto estava num táxi, em Campo de Ourique, e vi o Continente on Ice. Não conhecia a marca, e por momentos pus-me a imaginar que o empreendedorismo do senhor Belmiro de Azevedo, capaz de lotar picnics monumentais na Avenida da Liberdade, com direito a concerto de Tony Carreira, também podia meter os portugueses a fazer compras em patins, em hiper ringues de gelo, enfiando um euro na ranhura posterior da rena que puxaria o trenó das compras. Mas depressa o meu delírio Disney on Ice versão grande superfícies comerciais foi arruinado pela constatação de que se tratava de uma loja de congelados.
Muitas marcas preferem nomes e slogans em inglês. Não é uma trend – é uma praga. Mas sei que há pelo menos um punhado de criativos capazes de usar o português para tornar apelativo um sítio onde se vendem postas de pescada para cozer.
Talvez eu seja old school, perdão, da velha guarda, mas continuo a achar que um gajo porreiro é melhor do que uma dúzia de hipsters cool.
Lisboa não sejas francesa
Não me surpreendeu que Lisboa estivesse graciosa e meio despida. O verão bate na cidade com uma fúria lânguida, há mais estrangeiros a pulsar no rumor das ruas, o céu fica improvavelmente rosa quando o sol escorrega, com vagar, para a ponta mais ocidental da Europa. Lisboa, já se sabe, foi considerada destino turístico de charme e qualidade, ganhou prémios, ficou famosa nas revistas. A capital – ou pelo menos os bairros históricos -, parece menos anémica do que o resto do país. Talvez seja a maquilhagem de quem tem de receber bem, mas a verdade é que eu gosto da melhoria na qualidade dos serviços (ainda falta muito, eu sei), e do viveiro imparável de bons restaurantes, ou neotascas, peixarias e barbearias que convergem com livrarias, lojas de roupa e floristas, criando híbridos negócios que enchem o olho de quem espreita da rua. Temos bairros e mercados recuperados – embora o mercado da Ribeira me faça lembrar a praça de alimentação de um centro comercial. Na rua há miúdas giras, animação multinacional, boa onda e, espera-se, uma massa crítica resistente, que ainda se inquieta e não quer viver anestesiada pelo medo.
Um dia, caminhando de Santa Catarina para o Rossio, enternecido pelo cartão postal das escadinhas, a roupa estendida e um rafeiro bem enquadrado com o rio, vi o momento ser perturbado por um grupo que preferia experimentar tudo aquilo através de um telemóvel – o ecrã a servir de espelho, a câmara apontada às cabeças coladas para caberem na selfie 72 do dia. Não me deixei contaminar pelo cinismo. Sei que muitos temem que a cidade se torne tão impossível como Barcelona ou Paris, onde, em certos bairros, os turistas são em número superior aos nativos. Ouvi e li apreciações sarcásticas sobre a disneyficação de Lisboa, uma cidade montada por um estúdio de cinema para a diversão dos adultos estrangeiros. Há até quem julgue que uma postura orientada para a satisfação do cliente resulte numa atitude de subserviência – o pobre que serve e depende do rico estrangeiro. Se as preocupações são válidas, então, em vez de queixumes apocalípticos, comecemos a pensar no que fazer para impedir que o Chiado se torne em Las Vegas e não acabemos todos como eunucos nas orgias organizadas para os visitantes.
Uma coisa é certa: nunca gostei tanto de Lisboa como agora.
O meu Algarve
Sobes para o terraço e não há ninguém em casa. Escadas acima, roças a mão na cal rugosa da parede e visitas o terraço como se, após anos de exílio, acabasses de entrar no colégio onde estudaste. É uma visita museológica, uma fantasia no tempo e no espaço. Por momentos, acreditas estar no terraço do Algarve de antes, mais alto e amplo, mas com a mesma chaminé de arabescos brancos que evocará sempre coisas tão fundamentais como a sua alvura: a felicidade e o calor.
Nesse terraço andaste de bicicleta com o teu irmão mais velho, subiste para a casinha branca e seguraste uma antena de TV como se tivesses descoberto outro planeta, viste como Cristina dava atenção aos mais velhos quando, horas antes, tinha praticado contigo a habilidade dos beijos na boca – e tu, um boneco feliz, encostado no mármore das escadas do prédio, muito mais disposto a aproveitar a dádiva do que a ter ciúmes dos mais velhos.
Nesse terraço, claro, houve banhos de mangueira depois da praia. A nossa pele, que sugava sol meses a fio, nunca mais ficará tão escura e brilhante como nessas tardes. No terraço, jogávamos futebol descalços, toques curtos e suaves, um extremo cuidado para não chutar a bola das alturas para a estrada. E à noite o terraço era o nosso quartel general, livre do escrutínio dos adultos, plataforma para a invenção de planos mirabolantes e alcunhas, jogos de bate pé, mas também corpos deitados no cimento, tentando fazer sentido das estrelas enquanto debatiam a existência – e os filmes – de extraterrestres.
Em breve a casa ficará viva outra vez. Passaram-se anos num bater de pestanas. E percebeste que se o Super Homem escolheu a Fortaleza da Solidão, no frio polar, tu terás para sempre, em qualquer terraço algarvio, a sorte de não estar sozinho.