Desenrascanço
Tenho amigos que, criados na democracia, mais europeus que todos os seus antepassados, são agora a versão atualizada das velhas da Nazaré que anunciam, nos antológicos cartazes, “Quartos, Rooms, Zimmer, Chambres”. Este verão, muitos lisboetas alugaram as suas casas a turistas, aproveitando as suas próprias férias ou mudando-se para o apartamento de um amigo ou até dos pais, com o fim de fazer um dinheiro extra na era da frugalidade, aproveitando que a capital, distinguida com tantos prémios e elogiada em publicações internacionais, seduz turistas como nunca antes. Eu faria exatamente o mesmo, é preciso engenho e artifício quando estamos em apuros.
Vê-se que os portugueses foram aos treinos, fizeram wax on, wax off muitas vezes – e das promoções dos supermercados aos contentores para doar roupa em vários concelhos do país, dos rapazes viajando ao crava, pendurados no elétrico, aos infinitos cartazes “Multibanco fora de serviço” para fintar as taxas, não esquecendo o aumento do número de carteiristas em Lisboa, podemos assegurar que hoje o desenrascanço lusitano atingiu a excelência de um mestre Shaolin, e que se ainda houvesse Jogos Sem Fronteiras nós ganhávamos aquilo com uma perna às costas.
Meta o lixo no lixo
Da mesma maneira que, assim que chego a Lisboa, me atiro ao leite com chocolate Ucal e à Farinha Pensal com Cacau, há em mim uma pulsão para usar algum tempo das férias e afundar-me no sofá e no éter tóxico da televisão nacional. Espantou-me a quantidade de programas ao vivo, de manhã à noite, que oferecem dinheiro e ouro – um apresentador explicava que o ouro não paga impostos – em troca de chamadas pagas para um número de telefone repetido pelos mestres de cerimónias com a persistência bem disposta de um vendedor de aspiradores. Não quero retirar nenhuma conclusão sobre o estado do país com esta história, mas triste daqueles que têm um meio – a TV – que pode fazer coisas extraordinárias – ou pelo menos decentes – e prefere usá-lo para vender jogos de azar a velhinhos e desempregados.
Há muitos anos, certa tarde, numa associação de estudantes, houve uma exibição do vídeo do Taveira. Primeiros momentos: aquilo parecia ter graça, mas rapidamente se percebia que havia ali qualquer coisa de aproveitamento e degradação. Foi exatamente isso que senti ao ver a Correio da Manhã TV.
Baby boom
Há muitos emigrantes em Portugal no mês de Agosto. No aeroporto, nas ruas de Lisboa, nas praias do Algarve, encontrei amigos e conhecidos que vivem fora e que, cumprindo a tradição, regressam a Portugal para se empanturrarem de comezainas, abraçar a família, beber imperiais depois da praia com os amigos, suspirar nos miradouros e pegar ao colo muitos bebés. Tanto o elevado número de emigrantes como as notícias da baixa natalidade indicam menos bebés a nascer em solo nacional. Mas em meu redor – tenho sobrinhos e amigos com filhos pequenos – bem como nas fotos de muitos emigrantes, em redes sociais, celebrando as férias na terrinha, havia sempre muitos bebés. É um caso claro em que o contexto subverte a realidade. Moro a oito mil quilómetros da minha família e dos meus amigos e, tal como acontece com muitos emigrantes, suponho, já não enfrentamos a passagem do tempo com a displicência dos adolescentes. Enquanto estamos longe há quem nos morra, os miúdos crescem num tiro e já não só os outros que envelhecem. Talvez por isso os emigrantes queiram tanto, e precisem tanto, de estar com bebés, não apenas pela saudade e pela fofura dos mesmos, mas porque a partir de certo momento na vida, ainda mais se estamos longe, fazem-nos falta antídotos para a evidência da mortalidade.
O teu Algarve
Regressas mulher ao lugar onde foste miúda. A família já não tem barco, mas ganhou um bebé, o teu sobrinho, que te acorda todas as manhãs como se, incentivado pelos meus sussurros e pés de lã, estivesse a desempenhar uma missão secreta que termina em beijinhos na tia dorminhoca. O cheiro lá fora, dizes, é o mesmo de sempre – há quantos anos não regressavas ali? -, o cheiro do Algarve, seco de serra e embebido de mar, caramelizado de figos e alfarrobas, fragante de amendoeiras e estêvas. No terraço, a tua irmã lembra como as chaminés mouriscas, nas férias grandes da infância, confirmavam o fim da viagem desde Lisboa, a chegada a um território mágico nas chaminés, mas também nas recordações, um universo repleto de eventos e dias longuíssimos, embora apenas acessível uma vez por ano.
O teu pai fez o arroz de lingueirão de sempre e a tua mãe stand up paddle. Comeste bolas de Berlim na praia, fizeste uma roda e uma rodada, viste os rapazes da família construírem castelos, pistas de caricas e dominarem a ciência do grelhador. As cigarras ainda espalham a efervescência crepitante das suas asas quando, a meio da tarde, o carro cruza a 125 de janelas abertas e o calor, capaz de ondular a estrada, tem mais poder que todas as madalenas de Proust. Há coisas que não se esquecem, que nos seguram no tempo como se nos pegassem ao colo. E este verão passou a fazer parte dessa lista.